Há
53 anos que ando a lutar contra a memória. No campo de guerra que começa e acaba
neste esqueleto que me mantém de pé, tinha dado quase por finda esta mortalha
na tumba do esquecimento. Mas eis que ela voltou, como um fantasma redivivo.
Veio recalcitrar-me o espinho antigo, com as mais recentes notícias sobre o massacre
das gentes do Norte de Moçambique: “Estado Islâmico decapita 50 moçambicanos em
Cabo Delgado… 430 mil pessoas deslocadas… cadáveres perdidos entre o capim…
crianças desgarradas no mato”…
Não
aconselharia ninguém a ler este rolo de reminiscências trágicas. Mais desejaria
não ter de escrevê-las. Mas faço-o, talvez como exercício de catarse para
esconjurar o monstro de sete cabeças, desde a mágoa, o grito, a revolta, o
desespero. E faço-o também como homenagem àquele povo com quem lidei na
lusa-pandemia da guerra colonial, entre 1967-1969, uma etnia de um vasto território, tribos e crenças, em que
predominavam muçulmanos e cristãos católicos, estes últimos pertencentes à
etnia maconde, a mais aguerrida e temida de Cabo Delgado.
Quanto
gostaria revisitar Mocímboa da Praia, Nambude, Diaca, a curva da morte, Chitolo,
Mueda, Muidumbe, toda a imensa floresta
até Palma, as margens do rio Rovuma, de onde se avistava a Tanzânia, antigo
reino do Tanganica. Sonho impossível! Em troca, sinto sob os meus pés a poeira
das picadas, as mangueiras e os cajueiros que roçavam as nossas cabeças à
passagem dos carros de combate, pressinto os passos daquela pobre gente que, ao
ouvir o sinal de “aí vem a tropa
portuguesa”, fugiam espavoridas, adultos, crianças, velhos, deixando ainda
o tacho da mandioca entre as duas pedras que aconchegavam as brasas da lareira.
Vejo o furor dos nossos soldados cortando à catanada os arbustos, os milheiros,
todas as plantações em redor da palhota. E eu, lá dentro, descobria objectos de
culto católico, imagens de Fátima, terços, evangelhos bilingue (português e
maconde) catecismos. E foi aí que despertei para este escandaloso absurdo: “Afinal,
estou aqui a patrocinar a matança de irmãos meus, católicos como nós”. Que faço
eu aqui? Não apenas eu, mas a Igreja, que se diz de Cristo?... Não suporto, por
indigno e sacrílego, que um bispo se chame brigadeiro, um padre coronel ou
capitão ou tenente ou alferes! Não é uma comenda, é uma nódoa inapagável no
peito e na alma do sacerdócio. Só por crassa ignorância ou indesmentível má fé,
que uma religião/Igreja, seja ela qual for, se sujeite tão servilmente às “Nep’s” de um exército, o mesmo que
dizer de um Estado!
Cabo
Delgado, Cabo grosso de misérias e de sangue, onde um malfadado capitão
(miliciano!) manda formar toda a Companhia e, à vista dos 150 homens em parada,
ordena a dois furriéis, um de cada lado, que cortem as duas orelhas a um
africano vivo, ali à frente de todos. Fora apanhado na picada. Exigia o
comandante, por meio de um intérprete
nativo, que o pobre homem descobrisse os
paióis da Frelimo, ao que respondia repetidamente que desconhecia tal cousa. De
seguida, foi abatido, ali também à frente de todos, dependurado depois num
tronco alto, na berma da picada. Cheguei a vê-lo ainda, só o esqueleto, porque
o corpo tinha sido devorado pelas aves da selva. Digo-o e não me arrependo, vi
nele o Cristo morto na cruz. Passada uma semana, os africanos retaliaram
tragicamente, matando 11 dos nossos, numa mina anti-carro.
Estas
e outras “cenas”, perpetradas hoje pelo “Estado Islâmico”, ontem pelo
catolicíssimo Estado Português. Uns, os nossos, invocando Jesus e Maria e os
outros, os jhiadistas, gritando “Alá (Deus) é grande e o seu Profeta”!
Execrável condição dos homens que não aprendem nada e continuam a fazer do Planeta uma selva de
animais ferozes!
Quem
me dera voltar atrás para poder desertar quando fui mobilizado ou, em
contrapartida, ir pedir perdão a Cabo Delgado, por ter sido forçadamente
incorporado num bando que, meio século antes, antecipou os crimes dos terroristas
muçulmanos. Razão tem Mia Couto, ao afirmar, em recente entrevista, que a “Grande
parte da Igreja Católica foi conivente com a ditadura”, ressalvando, no
entanto, o bispo Manuel Vieira Pinto e outros missionários defensores dos
moçambicanos.
Se,
por um lado, persegue-me o remorso de, em pleno mato, celebrar a Eucaristia àqueles
jovens sldos (também vítimas do regime) que saíam para matar, conforta-me
o baptismo dos 32 macondes que
administrei no extremo Norte de Moçambique, junto ao Rovuma, depois de uma acurada preparação feita por
monitores também macondes.
Quando
e como a ajuda internacional valerá àquela pobre gente, possuidora de tão ricos
recursos em prol da humanidade?!
23.Nov.20
Martins Júnior
.....tem razão, padre..... É a Guerra aquele monstro, que se sustenta das fazendas, do sangue, das vidas, e quanto mais come, e consome, tanto menos se farta (Sermão no anos da Sereníssima Rainha Nossa Senhora).
ResponderEliminarTambém eu coro de vergonha por uma guerra para a qual fui chamado duas vezes, e por duas vezes recusei apesar das boas garantias que me ofereciam. Reflexão genuína e fantástica. Obrigado e um abraço, P. Martins.
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