segunda-feira, 23 de novembro de 2020

REVISITAR CABO DELGADO E PEDIR-LHE PERDÃO

                                                                            


Há 53 anos que ando a lutar contra a memória. No campo de guerra que começa e acaba neste esqueleto que me mantém de pé, tinha dado quase por finda esta mortalha na tumba do esquecimento. Mas eis que ela voltou, como um fantasma redivivo. Veio recalcitrar-me o espinho antigo, com as mais recentes notícias sobre o massacre das gentes do Norte de Moçambique: “Estado Islâmico decapita 50 moçambicanos em Cabo Delgado… 430 mil pessoas deslocadas… cadáveres perdidos entre o capim… crianças desgarradas no mato”…

Não aconselharia ninguém a ler este rolo de reminiscências trágicas. Mais desejaria não ter de escrevê-las. Mas faço-o, talvez como exercício de catarse para esconjurar o monstro de sete cabeças, desde a mágoa, o grito, a revolta, o desespero. E faço-o também como homenagem àquele povo com quem lidei na lusa-pandemia da guerra colonial, entre 1967-1969, uma etnia de  um vasto território, tribos e crenças, em que predominavam muçulmanos e cristãos católicos, estes últimos pertencentes à etnia maconde, a mais aguerrida e temida de Cabo Delgado.

Quanto gostaria revisitar Mocímboa da Praia, Nambude, Diaca, a curva da morte, Chitolo, Mueda,  Muidumbe, toda a imensa floresta até Palma, as margens do rio Rovuma, de onde se avistava a Tanzânia, antigo reino do Tanganica. Sonho impossível! Em troca, sinto sob os meus pés a poeira das picadas, as mangueiras e os cajueiros que roçavam as nossas cabeças à passagem dos carros de combate, pressinto os passos daquela pobre gente que, ao ouvir o sinal de “aí vem a tropa portuguesa”, fugiam espavoridas, adultos, crianças, velhos, deixando ainda o tacho da mandioca entre as duas pedras que aconchegavam as brasas da lareira. Vejo o furor dos nossos soldados cortando à catanada os arbustos, os milheiros, todas as plantações em redor da palhota. E eu, lá dentro, descobria objectos de culto católico, imagens de Fátima, terços, evangelhos bilingue (português e maconde) catecismos. E foi aí que despertei para este escandaloso absurdo: “Afinal, estou aqui a patrocinar a matança de irmãos meus, católicos como nós”. Que faço eu aqui? Não apenas eu, mas a Igreja, que se diz de Cristo?... Não suporto, por indigno e sacrílego, que um bispo se chame brigadeiro, um padre coronel ou capitão ou tenente ou alferes! Não é uma comenda, é uma nódoa inapagável no peito e na alma do sacerdócio. Só por crassa ignorância ou indesmentível má fé, que uma religião/Igreja, seja ela qual for, se sujeite tão servilmente às “Nep’s” de um exército, o mesmo que dizer de um Estado!

Cabo Delgado, Cabo grosso de misérias e de sangue, onde um malfadado capitão (miliciano!) manda formar toda a Companhia e, à vista dos 150 homens em parada, ordena a dois furriéis, um de cada lado, que cortem as duas orelhas a um africano vivo, ali à frente de todos. Fora apanhado na picada. Exigia o comandante, por meio de um  intérprete nativo,  que o pobre homem descobrisse os paióis da Frelimo, ao que respondia repetidamente que desconhecia tal cousa. De seguida, foi abatido, ali também à frente de todos, dependurado depois num tronco alto, na berma da picada. Cheguei a vê-lo ainda, só o esqueleto, porque o corpo tinha sido devorado pelas aves da selva. Digo-o e não me arrependo, vi nele o Cristo morto na cruz. Passada uma semana, os africanos retaliaram tragicamente, matando 11 dos nossos, numa mina anti-carro.

Estas e outras “cenas”, perpetradas hoje pelo “Estado Islâmico”, ontem pelo catolicíssimo Estado Português. Uns, os nossos, invocando Jesus e Maria e os outros, os jhiadistas, gritando “Alá (Deus) é grande e o seu Profeta”! Execrável condição dos homens que não aprendem nada e  continuam a fazer do Planeta uma selva de animais ferozes!

Quem me dera voltar atrás para poder desertar quando fui mobilizado ou, em contrapartida, ir pedir perdão a Cabo Delgado, por ter sido forçadamente incorporado num bando que, meio século antes, antecipou os crimes dos terroristas muçulmanos. Razão tem Mia Couto, ao afirmar, em recente entrevista, que a “Grande parte da Igreja Católica foi conivente com a ditadura”, ressalvando, no entanto, o bispo Manuel Vieira Pinto e outros missionários defensores dos moçambicanos.

Se, por um lado, persegue-me o remorso de, em pleno mato, celebrar a Eucaristia àqueles jovens sldos (também vítimas do regime) que saíam para matar, conforta-me o  baptismo dos 32 macondes que administrei no extremo Norte de Moçambique, junto ao Rovuma,  depois de uma acurada preparação feita por monitores também macondes.

Quando e como a ajuda internacional valerá àquela pobre gente, possuidora de tão ricos recursos em prol da humanidade?!

 

23.Nov.20

Martins Júnior

  

         

2 comentários:

  1. .....tem razão, padre..... É a Guerra aquele monstro, que se sustenta das fazendas, do sangue, das vidas, e quanto mais come, e consome, tanto menos se farta (Sermão no anos da Sereníssima Rainha Nossa Senhora).

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  2. Também eu coro de vergonha por uma guerra para a qual fui chamado duas vezes, e por duas vezes recusei apesar das boas garantias que me ofereciam. Reflexão genuína e fantástica. Obrigado e um abraço, P. Martins.

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