quinta-feira, 25 de fevereiro de 2021

O “CANTO LIVRE” DE INTERVENÇÃO NA MADEIRA

                                                              


É portadora de uma mensagem solta a última semana de Fevereiro  que, em sendo o mais pequeno dos meses do ano, sobrepuja-se e enobrece-se como um esvoaçante clamor à Liberdade. Já o sentimos anteontem, 23, no todo nacional, com a evocação viva de Zeca Afonso e a Canção Política ou Canto Livre em Portugal.  E continua, a nível local, com lugar marcado a 27, uma efeméride incontornável em Machico.

         Pelo meio, hoje, 25, na mesa do nosso convívio de  Senso &Consenso pretendi estender a mesma ementa do “Canto Livre” aqui na Madeira. Por outras palavras: que sensibilidade tem o ilhéu madeirense face aos acontecimentos que lhe dizem respeito? Balanceado entre dois postes – resignação ou intervenção – qual o posicionamento, não só da canção, mas globalmente  da literatura madeirense?

         Tarefa árdua e delicada, tanto na forma como no fundo. Poderia fazer minhas as palavras do grande cantor Jacques Brell  : “Dêem-me dez páginas e explicar-lhe-ei como vejo a infância. Mas como a canção só dura três minutos, as dez páginas terão de reduzir-se a um verso”. Desde já previno que hoje serão apenas breves apontamentos de pesquisa, como que um prefácio para um ulterior desenvolvimento, dirigido   aos interessados em algo mais que não seja o orçamento da pandemia ou a pandemia do orçamento.

         Pois bem: Do percurso de quinhentos anos da poesia madeirense mapeados na prestigiosa  MUSA INSULAR,, de  Luís Marino e análise dos nossos  poetas da contemporaneidade ilhoa, recolhem-se curiosas sínteses, literalmente coincidentes com os diferentes regimes sócio-políticos e culturais das várias épocas analisadas. Não será estranha a qualquer observador minimamente atento a seguinte conclusão: em sistemas fechados, ditatoriais, o ”Canto Livre” – Canção Política ou de Intervenção – conquanto mais necessário, encontra-se algemado pela “censura” da época, pela repressão tanto mais violenta quanto mais férreo o regime. Daí, os passos seguintes: clandestinidade, prisão ou silêncio sepulcral. A todas estas condicionantes, acresce a escassez do território que, em proporção directamente inversa, superabunda em opulência de policiamento omnipresente e controlador. É o caso das ilhas, terro agreste onde o canto do poeta afoga-se no litoral mais fundo das periferias circundantes. Disse-o, com muita frontalidade e realismo, Medina de Gouveia (pseudónimo), um poeta menor, em “Falésias da Utopia”:

                            Ilha

Porção de desejo e luta

Rodeada de trabalho e suor

Por todos os lados

 

Ilha

Pequena ditadura de poder

Rodeada de autoritarismo e isolamento

Por todos os lados

 

             Poeta menor, disse eu. E esclareço a designação. Do cotejo de dezenas de volumes dos nossos vates de ontem e de hoje, verificam-se dois comportamentos visceralmente opostos: de um lado, a procura incessante de um estendal ao sol da fama e/ou do perfeccionismo oficial ou oficiante, se possível ao abrigo do reino. Estes saem da exiguidade das ilhas. De entre estes, há uns que proliferam apoteoticamente e outros que, quais personas non gratas, raro ou nunca voltam. O segundo grupo é o chamado ‘poetas menores’  que, mais preocupados com a essência do que com a acidência, prestigiam menos a forma e mais o fundo da inspiração. Quando qualifico de menoridade esta franja de cultores do “Canto Livre”, quero dizer que esses atingem a maioridade cívica e poética (porque a poesia é vida e o poeta é o que vai à frente) e formam a plêiade de construtores da sanidade holística de um povo.

         É aqui, neste trono da poesia, feita corpo e alma da sua ilha, que situo o eminente – e criminosamente  esmagado pelo tribunal da Santa Inquisição -  Francisco Álvares de Nóbrega, o “Nosso Camões” ou “Camões Pequeno”,  quando, há mais de duzentos anos, teve a coragem de denunciar o regime corrupto que dominava a Ilha:

                  Terreno estéril, árido, e mirrado,

Dos mais terrenos, por meu mal desdouro

Tu convertes em peste a chuva de ouro

Que entorna sobre ti Jove Sagrado

………….

Tu, podendo das graças ser tesouro

És só de espinhos ásperos juncado.

…………

O grande Deus que em ti se adora é Pluto  (o dinheiro)

……….

Pagou caro a sua frontalidade, ele que noutros sonetos exaltou a beleza da ilha, “Flor do Oceano”!  Mas novos ventos sopraram em Portugal e na Madeira. Foi ele também um dos precursores da decisiva Monarquia Constitucional,  fruto do movimento revolucionário de 1820.

Afinal, nem completei o prefácio do “Canto Livre” no arquipélago. Teremos tempo de abrir este documentário deveras elucidativo da nossa história sócio-cultural.  

 

25.Fev.21

Martins Júnior

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