É
portadora de uma mensagem solta a última semana de Fevereiro que, em sendo o mais pequeno dos meses do ano,
sobrepuja-se e enobrece-se como um esvoaçante clamor à Liberdade. Já o sentimos
anteontem, 23, no todo nacional, com a evocação viva de Zeca Afonso e a Canção
Política ou Canto Livre em Portugal. E
continua, a nível local, com lugar marcado a 27, uma efeméride incontornável em
Machico.
Pelo meio, hoje, 25, na mesa do nosso
convívio de Senso &Consenso pretendi estender a mesma ementa do “Canto
Livre” aqui na Madeira. Por outras palavras: que sensibilidade tem o ilhéu
madeirense face aos acontecimentos que lhe dizem respeito? Balanceado entre
dois postes – resignação ou intervenção – qual o posicionamento, não só da canção,
mas globalmente da literatura madeirense?
Tarefa árdua e delicada, tanto na forma
como no fundo. Poderia fazer minhas as palavras do grande cantor Jacques Brell : “Dêem-me dez páginas e explicar-lhe-ei como
vejo a infância. Mas como a canção só dura três minutos, as dez páginas terão
de reduzir-se a um verso”. Desde já previno que hoje serão apenas breves
apontamentos de pesquisa, como que um prefácio para um ulterior desenvolvimento,
dirigido aos interessados em algo mais que não seja o
orçamento da pandemia ou a pandemia do orçamento.
Pois bem: Do percurso de quinhentos
anos da poesia madeirense mapeados na prestigiosa MUSA
INSULAR,, de Luís Marino e análise
dos nossos poetas da contemporaneidade
ilhoa, recolhem-se curiosas sínteses, literalmente coincidentes com os
diferentes regimes sócio-políticos e culturais das várias épocas analisadas. Não
será estranha a qualquer observador minimamente atento a seguinte conclusão: em
sistemas fechados, ditatoriais, o ”Canto Livre” – Canção Política ou de Intervenção – conquanto mais necessário,
encontra-se algemado pela “censura” da época, pela repressão tanto mais violenta
quanto mais férreo o regime. Daí, os passos seguintes: clandestinidade, prisão
ou silêncio sepulcral. A todas estas condicionantes, acresce a escassez do
território que, em proporção directamente inversa, superabunda em opulência de
policiamento omnipresente e controlador. É o caso das ilhas, terro agreste onde
o canto do poeta afoga-se no litoral mais fundo das periferias circundantes.
Disse-o, com muita frontalidade e realismo, Medina de Gouveia (pseudónimo), um
poeta menor, em “Falésias da Utopia”:
Ilha
Porção
de desejo e luta
Rodeada
de trabalho e suor
Por
todos os lados
Ilha
Pequena
ditadura de poder
Rodeada
de autoritarismo e isolamento
Por
todos os lados
Poeta
menor, disse eu. E esclareço a designação. Do cotejo de dezenas de volumes dos
nossos vates de ontem e de hoje, verificam-se dois comportamentos visceralmente
opostos: de um lado, a procura incessante de um estendal ao sol da fama e/ou do
perfeccionismo oficial ou oficiante, se possível ao abrigo do reino. Estes saem
da exiguidade das ilhas. De entre estes, há uns que proliferam apoteoticamente
e outros que, quais personas non gratas, raro
ou nunca voltam. O segundo grupo é o
chamado ‘poetas menores’ que, mais
preocupados com a essência do que com a acidência, prestigiam menos a forma e
mais o fundo da inspiração. Quando qualifico de menoridade esta franja de
cultores do “Canto Livre”, quero dizer que esses atingem a maioridade cívica e
poética (porque a poesia é vida e o poeta é o que vai à frente) e formam a
plêiade de construtores da sanidade holística de um povo.
É aqui, neste trono da poesia, feita
corpo e alma da sua ilha, que situo o eminente – e criminosamente esmagado pelo tribunal da Santa Inquisição - Francisco Álvares de Nóbrega, o “Nosso Camões”
ou “Camões Pequeno”, quando, há mais de
duzentos anos, teve a coragem de denunciar o regime corrupto que dominava a
Ilha:
Terreno estéril, árido, e mirrado,
Dos
mais terrenos, por meu mal desdouro
Tu
convertes em peste a chuva de ouro
Que
entorna sobre ti Jove Sagrado
………….
Tu,
podendo das graças ser tesouro
És
só de espinhos ásperos juncado.
…………
O
grande Deus que em ti se adora é Pluto (o
dinheiro)
……….
Pagou
caro a sua frontalidade, ele que noutros sonetos exaltou a beleza da ilha, “Flor
do Oceano”! Mas novos ventos sopraram em
Portugal e na Madeira. Foi ele também um dos precursores da decisiva Monarquia
Constitucional, fruto do movimento
revolucionário de 1820.
Afinal,
nem completei o prefácio do “Canto Livre”
no arquipélago. Teremos tempo de abrir este documentário deveras
elucidativo da nossa história sócio-cultural.
25.Fev.21
Martins Júnior
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