terça-feira, 23 de fevereiro de 2021

PERENIDADE E VIGOR DA CANÇÃO POLÍTICA/CANTO LIVRE

                                                                       


Não me tragam mais troféus

Nem me lembrem mais os pides as prisões

Nem palmas nem medalhões

 

Porque eu ando por aí

Em tudo o que canta

Em tudo o que clama

Em tudo o que se alevanta

E olhando o sol sorri

 

Eu não morri

Porque eu vivo em ti       

 

Foi este o eco da sua voz que, cavada e cravada, me ficou enquanto o seu corpo descia à campa rasa. Um eco mais forte que todos os acordes instrumentais e todas as canções daquele povo imenso que encheu as ruas e o cemitério da Senhora da Piedade, Setúbal, em 23 de Fevereiro de 1987. Trinta anos volvidos, em 2017, transcrevi o que, no mais íntimo de mim mesmo, pareceu-me o seu apelo.

Evocar Zeca Afonso nunca será o reconfigurar do estafado ritual das homenagens póstumas nem mesmo a reduplicação factual de episódios passados. Por isso, dispenso-me de trazer nesta hora o comovente, inesquecível encontro na clínica ‘Santa Isabel’, em Coimbra, pouco tempo antes da sua morte. Passo também por alto a memorável presença na, então, Vila de Machico, em 1976, (já caía a noite) quando, agarrado à estátua de Tristão Vaz Teixeira, cantou  a imortal “Grândola, Vila Morena” e teve por ‘aplauso oficial’ esta cena indescritível: um enorme apagão põe tudo às escuras, de repente aparecem os ‘unimogs’ da tropa de onde saltam dezenas de militares a bater às cegas na multidão que foi fugindo por ruas e atalhos atá às zonas rurais. Cenários tribais, pós-25 de Abril na Madeira…

Recordar Zeca Afonso é mergulhar nos mares procelosos, por outros navegados, de onde surgiu a baía franca da Liberdade, o porto seguro de um Portugal Novo. Para isso, teve um papel singular e decisivo o justamente chamado Canto Livre, a Canção Política, a Música de Intervenção. E é neste roteiro que se inscreve toda uma plêiade de  escritores e melodistas talentosos que fizeram da “cantiga uma arma”, a mais autêntica e permeável, por afirmar-se como arma pacífica, sensível e motivadora.

Diversos têm sido os olhares sobre a Canção Política. A atmosfera plúmbea da repressão salazarista atirou os poetas e cantores de intervenção para uma espécie de ghetto marcado pela clandestinidade, a que só tinham acesso determinados extractos sociais, possuidores de uma cultura ético-política acima da mediana. Lembro-me de, ainda em Moçambique, nas margens do rio Zambeze, ter ouvido um, na altura, recente  disco de Zeca Afonso, em reunião clandestina,  com um grupo reduzidíssimo de amigos,  à luz da vela,  não fôssemos denunciados pela rua.

A metamorfose provocada pela Revolução dos Cravos na sociedade portuguesa, a libertação dos presos políticos, o desmantelamento da ‘Pide’ e a consequente descompressão do ambiente social, a que se somou uma relativa melhoria da qualidade de vida relegaram o Canto Livre para o baú das fotografias de família, quando não de memória do ‘folclore anti-fascista’.

Entretanto, surgiram obras de investigação dirigidas a esse vasto e precioso tesouro de criatividade artístico-social – cito, por todos, José Jorge Letria, José Barata Moura, Viriato Teles, o nosso conterrâneo José Viale Moutinho – as quais, em parceria com sucessivas reedições das canções de Zeca Afonso, Adriano Correia de Oliveira, José Mário Branco, Sérgio Godinho, na voz de novos intérpretes, trouxeram à ribalta da actualidade a força motriz e o permanente vigor da Canção Política, sobretudo na intuição analítica dos acontecimentos que ao país dizem respeito. O mundo tem necessidade dos Cantores de Intervenção, como sentinelas vigilantes, videntes do futuro, enfim, profetas hodiernos da Libertação.

Um povo atento escuta a sua voz.  Com ela abre caminhos e faz corajosamente a sua marcha. Nas circunstâncias actuais, a mensagem do Canto Livre está consignada aos rappers, jovens tocados pelo talento e pela acuidade de visão sobre o mundo. Foi a voz de um deles, Pablo Hasél, que alvoroçou várias cidades de Espanha. Os factos aí estão, indesmentíveis e reforçados.

Entre nós, ilhéus, é capciosa a estratégia anti-Canto Livre e anti-Canção Política, uma estratégia silenciosamente concertada entre poderes dominantes e informação publicada. Não obstante, consolou-me uma excepção,  pela boca de uma artista plástica madeirense que afirmou em entrevista à RDP/M e sem rodeios: “A arte tem de ser política, o que não quer dizer partidária. Tem de estar atenta aos acontecimentos e espelhar na tela um olhar crítico sobre o que se passa à sua volta”.

 Machico marcou o seu lugar: jovens da Ribeira Seca executaram canções de Zeca Afonso e o centro da cidade encheu-se de sonoridades com a projeção pública das músicas do imortal Andarilho da Liberdade.

Saudações solidárias à Associação José Afonso (AJA) na pessoa do seu presidente Francisco Fanhais!

 

23.Fev.21

Martins Júnior

  

 

     

 

 

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