Não me tragam mais troféus
Nem me lembrem mais os pides as prisões
Nem palmas nem medalhões
Porque eu ando
por aí
Em tudo o que canta
Em tudo o que clama
Em tudo o que se alevanta
E olhando o sol sorri
Eu não morri
Porque eu vivo em ti
Foi
este o eco da sua voz que, cavada e cravada, me ficou enquanto o seu corpo
descia à campa rasa. Um eco mais forte que todos os acordes instrumentais e
todas as canções daquele povo imenso que encheu as ruas e o cemitério da
Senhora da Piedade, Setúbal, em 23 de Fevereiro de 1987. Trinta anos volvidos,
em 2017, transcrevi o que, no mais íntimo de mim mesmo, pareceu-me o seu apelo.
Evocar
Zeca Afonso nunca será o reconfigurar do estafado ritual das homenagens
póstumas nem mesmo a reduplicação factual de episódios passados. Por isso,
dispenso-me de trazer nesta hora o comovente, inesquecível encontro na clínica
‘Santa Isabel’, em Coimbra, pouco tempo antes da sua morte. Passo também por
alto a memorável presença na, então, Vila de Machico, em 1976, (já caía a
noite) quando, agarrado à estátua de Tristão Vaz Teixeira, cantou a imortal “Grândola, Vila Morena” e teve por
‘aplauso oficial’ esta cena indescritível: um enorme apagão põe tudo às
escuras, de repente aparecem os ‘unimogs’ da tropa de onde saltam dezenas de
militares a bater às cegas na multidão que foi fugindo por ruas e atalhos atá
às zonas rurais. Cenários tribais, pós-25 de Abril na Madeira…
Recordar
Zeca Afonso é mergulhar nos mares procelosos, por outros navegados, de onde
surgiu a baía franca da Liberdade, o porto seguro de um Portugal Novo. Para
isso, teve um papel singular e decisivo o justamente chamado Canto Livre, a
Canção Política, a Música de Intervenção. E é neste roteiro que se inscreve
toda uma plêiade de escritores e
melodistas talentosos que fizeram da “cantiga uma arma”, a mais autêntica e permeável,
por afirmar-se como arma pacífica, sensível e motivadora.
Diversos
têm sido os olhares sobre a Canção Política. A atmosfera plúmbea da repressão
salazarista atirou os poetas e cantores de intervenção para uma espécie de ghetto marcado pela clandestinidade, a
que só tinham acesso determinados extractos sociais, possuidores de uma cultura
ético-política acima da mediana. Lembro-me de, ainda em Moçambique, nas margens
do rio Zambeze, ter ouvido um, na altura, recente disco de Zeca Afonso, em reunião
clandestina, com um grupo reduzidíssimo
de amigos, à luz da vela, não fôssemos denunciados pela rua.
A
metamorfose provocada pela Revolução dos Cravos na sociedade portuguesa, a
libertação dos presos políticos, o desmantelamento da ‘Pide’ e a consequente
descompressão do ambiente social, a que se somou uma relativa melhoria da
qualidade de vida relegaram o Canto Livre para o baú das fotografias de
família, quando não de memória do ‘folclore anti-fascista’.
Entretanto,
surgiram obras de investigação dirigidas a esse vasto e precioso tesouro de
criatividade artístico-social – cito, por todos, José Jorge Letria, José Barata
Moura, Viriato Teles, o nosso conterrâneo José Viale Moutinho – as quais, em
parceria com sucessivas reedições das canções de Zeca Afonso, Adriano Correia
de Oliveira, José Mário Branco, Sérgio Godinho, na voz de novos intérpretes,
trouxeram à ribalta da actualidade a força motriz e o permanente vigor da
Canção Política, sobretudo na intuição analítica dos acontecimentos que ao país
dizem respeito. O mundo tem necessidade dos Cantores de Intervenção, como
sentinelas vigilantes, videntes do futuro, enfim, profetas hodiernos da Libertação.
Um
povo atento escuta a sua voz. Com ela abre
caminhos e faz corajosamente a sua marcha. Nas circunstâncias actuais, a
mensagem do Canto Livre está consignada aos rappers,
jovens tocados pelo talento e pela acuidade de visão sobre o mundo. Foi a voz
de um deles, Pablo Hasél, que alvoroçou várias cidades de Espanha. Os factos aí
estão, indesmentíveis e reforçados.
Entre
nós, ilhéus, é capciosa a estratégia anti-Canto Livre e anti-Canção Política,
uma estratégia silenciosamente concertada entre poderes dominantes e informação
publicada. Não obstante, consolou-me uma excepção, pela boca de uma artista plástica madeirense que
afirmou em entrevista à RDP/M e sem rodeios: “A arte tem de ser política, o que
não quer dizer partidária. Tem de estar atenta aos acontecimentos e espelhar na
tela um olhar crítico sobre o que se passa à sua volta”.
Machico marcou o seu lugar: jovens da Ribeira
Seca executaram canções de Zeca Afonso e o centro da cidade encheu-se de
sonoridades com a projeção pública das músicas do imortal Andarilho da
Liberdade.
Saudações
solidárias à Associação José Afonso (AJA) na pessoa do seu presidente Francisco
Fanhais!
23.Fev.21
Martins Júnior
Sem comentários:
Enviar um comentário