Com
esta enigmática pergunta dou continuidade ao arrazoado do meu penúltimo blog, como prometi e onde sinalizei o
“pequeno-grande passo” dado em 500 anos da história da Igreja, entre o século
XVI, de Leão X até Francisco, século XXI. Antes, porém, permita-se-me
clarificar que, no título acima, quando escrevo “entregue às almas” quero
relevar o seu sentido mais incisivo, ou seja, o de devolver/restituir a obra
aos seus legítimos donos.
Vem tudo a propósito da viagem de Francisco
Papa ao Iraque, uma genuína e fenomenal ‘lança em África’, que nenhum outro
monarca/presidente ousaria fazer nas actuais circunstâncias. O frágil ancião,
já octogenário, fê-lo com a humildade de um mendigo da Paz e com um sucesso de
virtual conquistador do Oriente.
Abandonou, anteontem, o rasto de
escombros a que ficaram reduzidas muitas igrejas e mesquitas e reentrou nos
pórticos sumptuosos do Vaticano espelhados nas
tapeçarias de luxo bizantino. O peregrino, por dever de ofício, voltou
sentar-se no trono leonino do palácio, dito apostólico. Eu disse ‘leonino’, com
toda a propriedade do termo, porque foi esse o mesmo baldaquino construído pelo
seu antecessor renascentista, Leão X. E é aí que se encontram, todos os dias,
os dois Pontífices, tão distantes no tempo e na práxis pastoral, mas
coercivamente (ao menos, o Papa Francisco) unidos, siameses na ocupação do
mesmo lugar – o Vaticano.
Ai,
a colina do Vaticano, campo de milhares de cristãos carbonizados pelo ódio de
Nero neurótico!… Da vulva do martírio, diria Tertuliano, nasceu a sementeira da
cristandade. Como foi possível, então, que do sangue de mártires crescesse e se
agigantasse o “Capitólio Romano”?!
Símbolo
do Poder Absoluto, Cume da Opulência e Cúpula da Realeza Monárquica, o Vaticano
pertence às almas. Do outro mundo. Mais precisamente do Purgatório do século
XVI. Cada tijolo, cada pedra-mármore, cada coluna representam o cheque pago
neste mundo como caução de 100, 200, 1000, 5000 ou 100.000 dias de prisão nesse
aljube imaginário do Além. O ‘contrato-promessa’ desta permuta negocial atingiu
tal grau de sacralidade que até tomou o sacro-gracioso nome de “Indulgências”,
consignadas neste místico teorema: se
deres a Roma xis, terás menos dias a arder no Purgatório,
mas se deres xis mais, baixam em
proporção inversa os dias da pena crematória. Em síntese: vender
antecipadamente o Outro Mundo! E assim
crescia, pedra-a-pedra, chama-a-chama, alma-a-alma, o colossal, apoteótico,
monumental condomínio, baptizado e canonizado como “Praça e Basílica de São
Pedro”, rivalizando com os palácios imperiais da época.
Promotores
eméritos deste feito: o Papa Leão X e o seu musculado
antecessor
Júlio II.
Mas
enquanto os Sumos Promotores viam erguer-se a Magnífica Cúpula e enquanto se
inebriavam com o perfume do incenso a arder das almas que subiam ao céu, a
Igreja Católica Romana partia-se aos bocados com as diversas igrejas
protestantes que contestaram as “Indulgências” e após a excomunhão do líder
Lutero, por Leão X.
Grande
Mestre é o Tempo! Volvidos 500 anos, o Papa Francisco recusou-se a fazer do
palácio apostólico o lugar dos seus aposentos privados. Embora forçado a usar
as palacianas instalações para as funções inerentes ao estatuto pontifício, a opção do seu próprio
afastamento revela a sensibilidade de quem sente que o “Capitólio Romano” não é
nem nunca será a casa de Jesus de Nazaré nem do seu homónimo Francisco de
Assis.
Por
mais que brilhem aos olhos dos turistas as excelsas produções dos génios da
arte quinhentista, tudo aquilo cheira a mortos, velórios seculares, crimes de
simonia indisfarçada, negócio incompatível com a ‘Casa do Pai’.
Domingo
passado, ouvimos o zunir do chicote que a fúria do Nazareno arremessou contra
os vendilhões do Templo: ”Rua daqui, não façais da Casa do Meu Pai um mercado
da feira”. (Jo.2,13-16). Vendiam bois, ovelhas e pombas. Não negociavam almas do
Purgatório…
Pudessem
os deuses escutar a minha prece e eu pedir-lhes-ia que conservassem por mais
500 anos a vida deste vidente itinerante chamado Francisco. Porque algo me diz
que ele teria tempo e coragem para “entregar às almas” o Capitólio Romano.
Ainda que o chamassem de “inconsciente e herege”, como, de resto, após a viagem
ao Iraque, já fizeram (uns ao vivo, outros em surdina) os magnatas purpurados
que habitam o palácio, ofensivamente dito apostólico. Com a “entrega às almas”
subentendo um destino global, fosse qual fosse, condigno, mas nunca como ex-libris de Jesus, o Nazareno, nem do
seu Representante.
Como
foi tão fácil e expedito fugir da matriz evangélica e quão moroso e sofrido
será regressar à “Casa Paterna”!
09.Mar.21
Martins Júnior
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