Após
o sol sabatino do coração de Maio – era sábado e era dia “15” – com a multidão de abraços e ‘glamores’
dentro e fora das redes sociais, arrisco-me hoje a ser condenado na via pública,
sobretudo pelo pesado código pio-inquisitorial dos crentes mais crentes deste
mundo. Mas é a lei da vida, o inato jogo de contrastes em que inevitavelmente
nos tornamos actores-à-força.
Foram
os contrastes do dia que motivaram ‘a história que vou contar’. Com efeito,
assim foi: no mesmo dia em que diante de mim se brindava à inauguração da alcova de futuros nascituros (é esse o horizonte de um novo casamento) –
logo de seguida dirigi-me ao berço derradeiro da vida para oficiar no cemitério
local a despedida final de uma anciã de 84 anos, a vizinha mais próxima do
templo da Ribeira Seca, a minha mais chegada vizinha. E foi nessa hora que me
acudiu à mente e agitou as cordas do coração a tal ‘história que vou contar’.
Era uma vez…
Era uma vez, num recanto
marcado por uma intensa ruralidade, explorado por séculos de mandantes e
senhorios. Um dos senhorios da terra – e da alma dos devotos – possuía o
talismã dos divinos arcanos, a diocese. O titular da diocese entendeu expulsar
o padre que lá estava. O povo do lugar opôs-se decididamente. O bispo ameaçou fechar
a igreja e, perante a oposição popular, recorreu ao governo que enviou forças
policiais encerrar as portas e vedar o passo a quem ousasse pôr o pé no adro.
Mas o insólito aconteceu.
Morreu o vizinho mais próximo. Era um pobre trabalhador das britadeiras,
sufocados os pulmões pela poeira dastrituradoras. A polícia não deixou entrar o
caixão na igreja nem sequer atravessar o adro que mediava entre a casa e a
estrada. Nem igreja, nem adro, nem padre. Que fazer?... Há então uma voz de
mulher sessentona e líder: “Vamos todos em procissão até ao cemitério. Já que não
deixam vir o nosso padre, vamos pela estrada abaixo, fazendo a nossa oração. Sem
cruzes, sem pendões, sem padre. Não é o padre que salva o morto”. O caixão foi transportado por quatro homens
que tiveram de atravessar o recinto desportivo da paróquia, sobranceiro ao adro
guardado pelos polícias. Chegados à estrada, lá foram a pé, vizinhos,
operários, trabalhadores rurais, percorreram os cerca de três quilómetros até
ao cemitério, onde encomendaram o defunto.
Dizem que foi o maior
funeral de sempre em toda a freguesia e concelho. Quem participou no acto, há
36 anos, ainda hoje exclama com emoção: ”Nunca rezei com tanta fé e tanta força
como nesse dia pela estrada abaixo, Eu e toda a gente”.
Por
certo que ninguém perguntar-me-á o porquê desta reminiscência, junto à
sepultura da octogenária, minha vizinha mais próxima. Já imaginaram, talvez. Se
não, eu desabafo: a história tem nomes, números e datas. E o defunto de há 36
anos era precisamente o marido daquela que vim acompanhar neste último sábado
de contrastes, de emoções e de sérias interrogações.
Perdoem-me esta cedência à fragilidade
emocional, mas devo dizer que foi este o momento mais forte do dia. Da semana.
E, em parte, de toda a vida. Pelas profundas e inquietantes incógnitas que nos
interpelam, entre as quais qual o efectivo conteúdo funcional de muitas
exéquias, sobretudo as de marcada sumptuosidade faraónica?!... Tente cada
qual segurar uma candeia acesa sobre “a mina escura e funda… o trem da minha vida”, na voz da imortal Elis Regina.
Mas, tão forte quanto a mensagem
interrogante, é a expressão de um povo que soube ultrapassar os mitos e a
suposta sacralidade de certos ritos com que instituições retrógradas teimam em
manietar o legítimo curso da inteligência humana…
17.Mai.21
Martins
Júnior
Agradeço Senhor padre Martins pelas palavras que definem uma mulher poderosa,guerreira,uma mulher com muita fé e força.
ResponderEliminarAs lagrimas me caêm com cada palavra que leio.
Meus pais estao juntos agora no céu. Um muito obrigado.