segunda-feira, 17 de maio de 2021

ENTRE CANTOS E PRANTOS – UMA HISTÓRIA EE CONTRASTES

                                                                       


                                             

Após o sol sabatino do coração de Maio – era sábado e era  dia “15” – com a multidão de abraços e ‘glamores’ dentro e fora das redes sociais, arrisco-me hoje a ser condenado na via pública, sobretudo pelo pesado código pio-inquisitorial dos crentes mais crentes deste mundo. Mas é a lei da vida, o inato jogo de contrastes em que inevitavelmente nos tornamos actores-à-força.

Foram os contrastes do dia que motivaram ‘a história que vou contar’. Com efeito, assim foi: no mesmo dia em que diante de mim se brindava à inauguração  da alcova de futuros nascituros  (é esse o horizonte de um novo casamento) – logo de seguida dirigi-me ao berço derradeiro da vida para oficiar no cemitério local a despedida final de uma anciã de 84 anos, a vizinha mais próxima do templo da Ribeira Seca, a minha mais chegada vizinha. E foi nessa hora que me acudiu à mente e agitou as cordas do coração a tal ‘história que vou contar’.

Era uma vez…

Era uma vez, num recanto marcado por uma intensa ruralidade, explorado por séculos de mandantes e senhorios. Um dos senhorios da terra – e da alma dos devotos – possuía o talismã dos divinos arcanos, a diocese. O titular da diocese entendeu expulsar o padre que lá estava. O povo do lugar opôs-se decididamente. O bispo ameaçou fechar a igreja e, perante a oposição popular, recorreu ao governo que enviou forças policiais encerrar as portas e vedar o passo a quem ousasse pôr o pé  no adro.

Mas o insólito aconteceu. Morreu o vizinho mais próximo. Era um pobre trabalhador das britadeiras, sufocados os pulmões pela poeira dastrituradoras. A polícia não deixou entrar o caixão na igreja nem sequer atravessar o adro que mediava entre a casa e a estrada. Nem igreja, nem adro, nem padre. Que fazer?... Há então uma voz de mulher sessentona e líder: “Vamos todos em procissão até ao cemitério. Já que não deixam vir o nosso padre, vamos pela estrada abaixo, fazendo a nossa oração. Sem cruzes, sem pendões, sem padre. Não é o padre que salva o morto”.  O caixão foi transportado por quatro homens que tiveram de atravessar o recinto desportivo da paróquia, sobranceiro ao adro guardado pelos polícias. Chegados à estrada, lá foram a pé, vizinhos, operários, trabalhadores rurais, percorreram os cerca de três quilómetros até ao cemitério, onde encomendaram o defunto. 

Dizem que foi o maior funeral de sempre em toda a freguesia e concelho. Quem participou no acto, há 36 anos, ainda hoje exclama com emoção: ”Nunca rezei com tanta fé e tanta força como nesse dia pela estrada abaixo, Eu e toda a gente”.

    Por certo que ninguém perguntar-me-á o porquê desta reminiscência, junto à sepultura da octogenária, minha vizinha mais próxima. Já imaginaram, talvez. Se não, eu desabafo: a história tem nomes, números e datas. E o defunto de há 36 anos era precisamente o marido daquela que vim acompanhar neste último sábado de contrastes, de emoções e de sérias interrogações.

         Perdoem-me esta cedência à fragilidade emocional, mas devo dizer que foi este o momento mais forte do dia. Da semana. E, em parte, de toda a vida. Pelas profundas e inquietantes incógnitas que nos interpelam, entre as quais qual o efectivo conteúdo funcional de muitas exéquias, sobretudo as de marcada sumptuosidade faraónica?!... Tente cada qual segurar uma candeia acesa sobre “a mina escura e funda… o  trem da minha vida”,  na voz da imortal Elis Regina.

         Mas, tão forte quanto a mensagem interrogante, é a expressão de um povo que soube ultrapassar os mitos e a suposta sacralidade de certos ritos com que instituições retrógradas teimam em manietar o legítimo curso da inteligência humana…

         17.Mai.21

         Martins Júnior

1 comentário:

  1. Agradeço Senhor padre Martins pelas palavras que definem uma mulher poderosa,guerreira,uma mulher com muita fé e força.
    As lagrimas me caêm com cada palavra que leio.
    Meus pais estao juntos agora no céu. Um muito obrigado.

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