Porque
“nada de humano nos é estranho” – sejam quais e onde o tempo e o lugar – por
essa mesma razão pressuponho que a minha anterior mensagem sobre o
“Estado-pirata” do leste europeu terá suscitado interpretações e reações
contraditórias: de um lado, um consenso generalizado contra um tal (que fora) vigia ou gestor de
quinta soviética, Lukashenko, pelo
desvio de um avião com 121 pessoas a bordo e, por outro lado, eventuais discordâncias
pela aproximação que fiz a situações ocorridas nesta ilha, em passado não muito
distante.
Desde
logo, apresento a minha declaração de princípios: tudo quanto de importante (exaltante,
entusiástico ou trágico) chega aos nossos olhos e ouvidos nunca poderá
semelhar-se a pitorescos episódios de novela para fruir-se, a partir do sofá,
como sobremesa do protocolo doméstico. Antes, porém, deve servir de guião
condutor de um olhar analítico sobre o vasto mundo e, muito cirurgicamente,
sobre o piso que cada um de nós habita: o país, a região, a cidade, a aldeia.
Pessoalmente detesto o academismo romântico de quem descreve e adormece
cavalgando a neblina matinal ou, por outras palavras, quem calça as luvas
virgens das vestais do templo para ascender ao sétimo céu sem mescla de cheiro
ao húmus de onde saiu.
Respeitando
a idiossincrasia identitária de cada emissor-escritor e de cada
receptor-leitor, pouco me diz a literatura desencarnada, descomprometida, inócua
ou seráfica – “nem carne nem peixe” - dos arrumadores de palavras e colecionadores
de citações caçadas nos jardins suspensos do mercado babilónico.
É
por isso que o caso “Bielo-Rússia” não é
local, é global. O desvio do avião para prender um jornalista, sacrificando 120
passageiros de 18 nacionalidades, abala-nos a consciência, remexe-nos as
entranhas. A repressão transnacional, a ditadura obsessiva, a dominação
asfixiante sobre o jornalismo e a opinião pública, tudo isso faz soar os
alarmes de todo o mundo e as buzinas e campainhas dos pequenos territórios. Do
nosso também! E interpelar sem medo: “E se fosse cá dentro?... E se for cá dentro?...
E quem sabe se não andarão por aqui resquícios daquelas unhas dos répteis-raça-lukashenkos?”...
Rousseau
deixou-nos este pré-aviso assustador: “O homem nasce bom, a sociedade é que o
corrompe”. Nesta sociedade estamos nós, desde os altos magistrados das nações
ao mais humilde e anónimo aldeão das
furnas. Paradoxalmente nesta sociedade também estamos nós, os que podemos
purificar o ar que os outros respiram. Nós, os dotados de discernimento e verbo
e acção, que podemos neutralizar os bidões de crude que os ditadores, todos os
dias e sob diversas manobras (inclusive com ‘cavalos de Tróia’) ameaçam despejar sobre as nossas cabeças,
cegar os nossos olhos. Nós, os que nos recusamos a adormecer sobre as almofadas
ou sobre as pedras que outros nos deixaram, porque estamos de passagem, hoje
pertence-nos, amanhã será de outros, e é mandato nosso legar-lhes um mundo
melhor do que o que encontrámos, um ambiente mais respirável, um governo mais humano
e honesto, uma Igreja mais crística e
libertadora.
Citei
estas e subentendi outras instituições, porque em todas elas, no sopé mais rasteiro,
lá está o eiró viperino da ditadura mal disfarçada, pronto a sufocar,
paulatinamente e com o semblante convidativo da serpente do éden, os incautos -
às vezes, os melhores - enfim, toda a grei. Depende, pois, de nós, Sociedade,
unir-nos para travar o rasto e a cabeça do perigoso réptil.
Escrevi
no último blogue: “Escusavam-se as sanções da EU, da ONU, de todo o mundo
civilizado, se houvesse na Bielo-Rússia um povo esclarecido, uma Sociedade sã e
vigorosa. A urna do voto seria a “basuca” fatal contra a ditadura do antigo
vigia-feitor de uma quinta soviética. Não seriam necessários heróis, nem mártires,
nem jornalistas presos às mãos de um Estado-pirata.
Haja
coragem de transpor para cá as induções que escorrem de lá. Gostaria de
fazê-lo. É meu imperativo fazê-lo. Porque depende de nós não dar um naco de
isco ao molho de eirós que minam a nossa democracia. “Juntos, temos o mundo na
mão”! Sem protagonismos nem heroísmos.
Presto
homenagem àquele Homem que, em 26 de Maio de 1521 (fez ontem 500 anos!) foi condenado como herético, pelo conluio
entre o Papado e o Sacro Império Romano-Germânico, de Carlos V, na denominada
Dieta de Worms. Condenaram Martinho LUTERO, mas os seus correligionários ainda
hoje o mantêm vivo e até reabilitado pelo próprio Vaticano.
Não
há força maior que a do Cidadão organizado e esclarecido.
27.Mai.21
Martins Júnior
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