Ainda que possa transparecer uma nesga
de exacerbado patriotismo natal, o que desta crónica resulta é a constatação de
um filão quase genético que percorre a alma das gentes de Machico. Nessa fonte –
que até lembra a ‘Fonte de Hipocrene’, a nascente mítica onde bebiam os poetas
da velha Atenas – dessedentaram-se várias gerações de artistas, cultores da
Língua de Camões, entre os quais o ‘Nosso Camões Pequeno’: Francisco Álvares de
Nóbrega.
Se quem vive à beira-mar traz no
coração um búzio de mil sons, quem percorre as verdes montanhas do vale tem
revérberos de mil cores transportados num raio de sol. É assim o Povo de
Machico. Demonstrou-o, à saciedade, por ocasião das comemorações do ‘8 de Maio
de 1440’, com inteira justiça arvorado em “Dia do Concelho”, após muitas e
participadas sessões de debate e esclarecimento nas cinco freguesias do
município.
Teria
de assinalar-se a gloriosa efeméride evocativa da ‘Carta de Doação da Primeira
Capitania, Machico, a Tristão Vaz Teixeira, pelo próprio punho do Infante Dom
Henrique’.
Assim
foi. Não apenas pelas restrições do momento, mas porque revelou o ADN cultural
, inscrito nos genes dos sucessivos descendentes de Tristão Vaz, navegador e
poeta. E daqui se extrai a razão do título-supra. É que na Ilha, os megalómanos
dominadores da grei costumam a desfraldar bandeiras despregadas, a foguetear os
ares límpidos com a polvorosa largada de tiros de artifício e embebedar o
zé-povinho com as lantejoulas líquidas que pendem dos céus e os metálicos
estalos que caem sobre a cabeça da gente. Não dispensam, antes impõem, o
ambulante e mirabolante bolo apoteótico, confecionado à base de alcatrão e
betão ciclópico, onde montam o palanque das inaugurações. E foi o que não
aconteceu na sede do concelho.
Pelo
contrário, Machico respirou o doce e profundo aroma da cultura, de muitos
cambiantes e inspirações. Quem ali passasse em toda a semana das comemorações pressentiria
que algo pairava no ar, a partir do próprio chão de calçada roliça, e que
confortava o espírito dos transeuntes. Mencionarei sucintamente alguns
episódios desta narrativa dos 581 anos do nosso Machico.
O
Painel, em azulejaria de fino recorte, no Largo dos Milagres, evocando e
homenageando o trabalho braçal das gentes de Machico, perpetua a trajectória
laboriosa de todo um passado histórico, desde os homens do mar, às bordadeiras,
ao homem serrano cultor da terra e fabricante do pão global. No Solar do
Ribeirinho, em meio de um recinto estrategicamente ‘bordado’ a pedra branca,
descrevendo uma enorme toalha de mesa, a ilustradora e autora Rafaela Rodrigues
lançou o seu bem concebido livro infanto-juvenil, dedicado a uma das principais
profissões de que se ocupavam as mulheres de Machico: “A Bordadeira”.
Na
área dos arranjos florais, foi de uma beleza edénica a decoração do centro da
cidade, primorosamente distribuída no Largo do Município, sob os olhares de
Tristão Vaz Teixeira, obra-prima do talentoso escultor-violinista Anjos
Teixeira. Merece também particular relevo o livro da doutora Zita Cardoso,
consagrada difusora das terras de Machico e do seu povo. A história do
Externato liceal, ali implantada por Emídio Queiroz Lopes e Ariete Teixeira de
Aguiar, nos recuados tempos em que tal segmento de ensino era inexistente no
concelho, constituiu um ponto alto das comemorações.
A
sessão solene do Dia do Concelho, propositadamente descentralizada para a
vila-extremo leste da Ilha, o Caniçal, primou pelo carácter idiossincrático do
seu programa, dando a palavra aos legítimos representantes do povo, os partidos
com assento na Assembleia Municipal e dispensando assim intromissões ‘extra-vagantes’
que quase sempre desvirtuam a
autenticidade genuína dos aniversariantes, as populações machiquenses.
Finalmente
– finis coronat opus, ‘o fim coroa a
obra’ – no aniversário 581º da
Capitania, há-de ficar inscrita em letras de ouro a publicação dos “ANAIS DO
MUNICÍPIO DA ANTIGA VILA DE MACHICO”, um precioso documento há tanto tempo
aguardado pelos munícipes e pelos estudiosos da história local e regional, ao
qual já fiz referência no momento oportuno!
De
relevar que todo este monumento de polivalência artístico-histórica foi corpo,
sangue, alma e vida de gente de Machico e a colaboração de abalizados
especialistas, sobretudo na edição dos “ANAIS”. Sem sombra de pretensos exclusivismos
locais, a verdade é que imperou nestas comemorações um genético amor ao nosso
torrão natal, à pureza original da (deixai-me assim classificar) “Machicidade”,
isto é, o carácter de ser, de pertencer a Machico, a Primeira Capitania
outorgada pelo Infante Dom Henrique, em 8 de Maio de 1440. A Capitania do
Funchal foi criada dez anos depois, em 1450. Podem reescrever a história. Não
podem, porém, apagá-la!
E
a prova maior desta torrente patriótica que uniu os proponentes e patronos da
iniciativa, com a Câmara Municipal à cabeça, a prova está no Hino a Machico, “A
Pátria do Autor”, como bem classificou o já citado Francisco Álvares de
Nóbrega. A concentração dos vários agrupamentos do concelho, desde Banda
Filarmónica, Grupo Coral, Tuna de Câmara, Grupo Folclórico do Caniçal, juntando
diversos escalões etários, sob a direcção de Felipe Gouveia e a especial participação
de João Caldeira, Sérgio Pão, Nuno Nicolau e Nelson Sousa há-de permanecer como testemunho perpétuo de
um Povo que soube fazer um tronco unitário de cultura e beleza autóctones de
Machico-Concelho. Vale bem a pena revisitar o vídeo então publicado.
Bem
hajam !!!
19.Mai.21
Martins Júnior
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