quarta-feira, 19 de maio de 2021

NEM SÓ DE ALCATRÃO SE FAZ UM BOLO DE ANIVERSÁRIO: OS 581 ANOS DA PRIMEIRA CAPITANIA DA MADEIRA

                                                                            


         Ainda que possa transparecer uma nesga de exacerbado patriotismo natal, o que desta crónica resulta é a constatação de um filão quase genético que percorre a alma das gentes de Machico. Nessa fonte – que até lembra a ‘Fonte de Hipocrene’, a nascente mítica onde bebiam os poetas da velha Atenas – dessedentaram-se várias gerações de artistas, cultores da Língua de Camões, entre os quais o ‘Nosso Camões Pequeno’: Francisco Álvares de Nóbrega.

         Se quem vive à beira-mar traz no coração um búzio de mil sons, quem percorre as verdes montanhas do vale tem revérberos de mil cores transportados num raio de sol. É assim o Povo de Machico. Demonstrou-o, à saciedade, por ocasião das comemorações do ‘8 de Maio de 1440’, com inteira justiça arvorado em “Dia do Concelho”, após muitas e participadas sessões de debate e esclarecimento nas cinco freguesias do município.

Teria de assinalar-se a gloriosa efeméride evocativa da ‘Carta de Doação da Primeira Capitania, Machico, a Tristão Vaz Teixeira, pelo próprio punho do Infante Dom Henrique’.

Assim foi. Não apenas pelas restrições do momento, mas porque revelou o ADN cultural , inscrito nos genes dos sucessivos descendentes de Tristão Vaz, navegador e poeta. E daqui se extrai a razão do título-supra. É que na Ilha, os megalómanos dominadores da grei costumam a desfraldar bandeiras despregadas, a foguetear os ares límpidos com a polvorosa largada de tiros de artifício e embebedar o zé-povinho com as lantejoulas líquidas que pendem dos céus e os metálicos estalos que caem sobre a cabeça da gente. Não dispensam, antes impõem, o ambulante e mirabolante bolo apoteótico, confecionado à base de alcatrão e betão ciclópico, onde montam o palanque das inaugurações. E foi o que não aconteceu na sede do concelho.

Pelo contrário, Machico respirou o doce e profundo aroma da cultura, de muitos cambiantes e inspirações. Quem ali passasse em toda a semana das comemorações pressentiria que algo pairava no ar, a partir do próprio chão de calçada roliça, e que confortava o espírito dos transeuntes. Mencionarei sucintamente alguns episódios desta narrativa dos 581 anos do nosso Machico.

O Painel, em azulejaria de fino recorte, no Largo dos Milagres, evocando e homenageando o trabalho braçal das gentes de Machico, perpetua a trajectória laboriosa de todo um passado histórico, desde os homens do mar, às bordadeiras, ao homem serrano cultor da terra e fabricante do pão global. No Solar do Ribeirinho, em meio de um recinto estrategicamente ‘bordado’ a pedra branca, descrevendo uma enorme toalha de mesa, a ilustradora e autora Rafaela Rodrigues lançou o seu bem concebido livro infanto-juvenil, dedicado a uma das principais profissões de que se ocupavam as mulheres de Machico: “A Bordadeira”.

Na área dos arranjos florais, foi de uma beleza edénica a decoração do centro da cidade, primorosamente distribuída no Largo do Município, sob os olhares de Tristão Vaz Teixeira, obra-prima do talentoso escultor-violinista Anjos Teixeira. Merece também particular relevo o livro da doutora Zita Cardoso, consagrada difusora das terras de Machico e do seu povo. A história do Externato liceal, ali implantada por Emídio Queiroz Lopes e Ariete Teixeira de Aguiar, nos recuados tempos em que tal segmento de ensino era inexistente no concelho, constituiu um ponto alto das comemorações.

A sessão solene do Dia do Concelho, propositadamente descentralizada para a vila-extremo leste da Ilha, o Caniçal, primou pelo carácter idiossincrático do seu programa, dando a palavra aos legítimos representantes do povo, os partidos com assento na Assembleia Municipal e dispensando assim intromissões ‘extra-vagantes’ que quase sempre  desvirtuam a autenticidade genuína dos aniversariantes, as populações machiquenses.

Finalmente – finis coronat opus, ‘o fim coroa a obra’ –  no aniversário 581º da Capitania, há-de ficar inscrita em letras de ouro a publicação dos “ANAIS DO MUNICÍPIO DA ANTIGA VILA DE MACHICO”, um precioso documento há tanto tempo aguardado pelos munícipes e pelos estudiosos da história local e regional, ao qual já fiz referência no momento oportuno!

De relevar que todo este monumento de polivalência artístico-histórica foi corpo, sangue, alma e vida de gente de Machico e a colaboração de abalizados especialistas, sobretudo na edição dos “ANAIS”. Sem sombra de pretensos exclusivismos locais, a verdade é que imperou nestas comemorações um genético amor ao nosso torrão natal, à pureza original da (deixai-me assim classificar) “Machicidade”, isto é, o carácter de ser, de pertencer a Machico, a Primeira Capitania outorgada pelo Infante Dom Henrique, em 8 de Maio de 1440. A Capitania do Funchal foi criada dez anos depois, em 1450. Podem reescrever a história. Não podem, porém, apagá-la!  

E a prova maior desta torrente patriótica que uniu os proponentes e patronos da iniciativa, com a Câmara Municipal à cabeça, a prova está no Hino a Machico, “A Pátria do Autor”, como bem classificou o já citado Francisco Álvares de Nóbrega. A concentração dos vários agrupamentos do concelho, desde Banda Filarmónica, Grupo Coral, Tuna de Câmara, Grupo Folclórico do Caniçal, juntando diversos escalões etários, sob a direcção de Felipe Gouveia e a especial participação de João Caldeira, Sérgio Pão, Nuno Nicolau e Nelson Sousa  há-de permanecer como testemunho perpétuo de um Povo que soube fazer um tronco unitário de cultura e beleza autóctones de Machico-Concelho. Vale bem a pena revisitar o vídeo então publicado.

Bem hajam !!!

  

19.Mai.21

Martins Júnior  

Sem comentários:

Enviar um comentário