sábado, 29 de maio de 2021

TRINTA ANOS DE UMA NOVA VIDA!

                                                                     




Quem ousou dizer que não é possível  ao Povo, dito miúdo e, para o engravatado status quo, considerado inculto, transfigurar-se de dentro para fora, reinventar-se, erguer-se às cumeadas da ciência e da ecologia?... Quem disse que homens e mulheres, pés descalços e xaile aos ombros, seriam incapazes de mudar mentalidades e passar de um ‘obrigatório’ ofício de matadores ao superior estatuto de redentores das espécies?...

         Pois, se alguém o disse enganou-se redondamente. Bastaria rumar ao extremo leste da ilha, nos idos de 1990, e aí constatar in loco e ao vivo a revolução cultural que se operou na mente e no coração das gentes do Caniçal.

Refiro-me ao novo olhar daquela população sobre o mundo dos cetáceos, então ‘turistas’ bemvindos àquele mar e que deixavam em terra produtos e divisas nacionais e estrangeiras, fundo de maneio à economia local e regional. A indústria baleeira ali sediada foi, sem sombra de dúvida, um generoso sustentáculo de muitas famílias de pescadores. Era o tempo da caça às baleias, uma vida dura, agreste, cheia tanto de perigo como de arte, desde o foguete-pregoeiro da presença do mamífero gigante até à destreza do arpoador, de quem se exigia uma perícia superior ao do cavaleiro tauromáquico. Recordo (acompanhei vária vezes, não sem um arrepio até à medula) o arrastar do real monstro marinho pela rampa acima para ser ‘barbaramente’ esquartejado (logo o sangue escorrendo rampa-abaixo)  e, depois, destinado às fases processuais de transformação industrial.

         Não vou ocupar-me do histórico, longo e rico, da indústria baleeira na ilha. Apenas desejo colocar no vértice civilizacional daquela freguesia a metamorfose assumida pela população que, após a proibição oficialmente decretada, viu com espanto entusiástico e plena concordância a deposição do ’machado de guerra’ e, em seu lugar, erguer-se um  trono onde ficou perpetuada a homenagem aos cetáceos. Na altura, recordo-me de ter dito que

“ o Caniçal fora o cadafalso da baleia, doravante será o altar da baleia”. Compete aqui relevar que ‘alma, coração e vida’ deste projecto foi Eleutério Reis, líder nato no ramo baleeiro e primeiro director do Museu. Pela sua acção dinâmica, incansável, o Museu da Baleia foi um polo aglutinador de biólogos e investigadores marítimos, cineastas e publicistas de Portugal e estrangeiro.

         Foi ontem a comemoração do trigésimo aniversário da instituição, agora instalada em digno e, até, sumptuoso estabelecimento público. Uma efeméride que brilhou pela sua simplicidade endémica, tal como no dia da sua abertura (e não inauguração), há três décadas. Seja-me permitido sintetizar a transformação ideo-empírica da população relativamente aos cetáceos numa única frase que então pronunciei perante entidades oficiais e pescadores: “Até ontem, a baleia foi pão para o corpo; a partir de hoje, será pão para o espírito”.

         Aproveito a oportunidade para agradecer à Câmara Municipal de Machico o exemplar que, pela mão da vereadora da Cultura, drª. Mónica Vieira me foi entregue,  de uma bem cuidada edição (“TRINTA ANOS, Memórias”, da actual  direcora, drª. Ana Teresa Menezes de Nóbrega), respigando, com a devida vénia, um excerto da imprensa madeirense, onde  a jornalista Eker Melim escreve: “O presidente da edilidade dirigiu palavras de elogio a Jorge Moreira, ex-presidente da CMM, que foi quem tomou a iniciativa deste museu”.

         Pouco importa o meu discurso para o caso. Mas devo partilhar o meu íntimo prazer intelectual e moral ao ler esta reportagem de há 30 anos. Com efeito, foi no meu mandato que se construiu a primeira sede do Museu, mas quem lançou a ideia fora o meu antecessor, dr. Jorge Moreira de Sousa. Para melhor esclarecimento, éramos de posições político-administrativas completamente opostas. Mas nada me impediu de dar o seu a seu dono. E a construção da vida e da sociedade deveria pautar-se por este guião: Cada qual faz a sua parte. E, fazendo cada um a sua parte, fica a obra completa!

         Já o dissera Fernando Pessoa: “Deus quer, o Homem sonha, a Obra nasce”.

 

         29.Mai.21

         Martins Júnior

         (Na gravura, Eleutério Reis, Martins Júnior, João Carlos Abreu, então secretário regional de Turismo e Cultura, convidado oficial, assinando o Livro de Honra).  

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