Quem
ousou dizer que não é possível ao Povo,
dito miúdo e, para o engravatado status
quo, considerado inculto, transfigurar-se de dentro para fora, reinventar-se,
erguer-se às cumeadas da ciência e da ecologia?... Quem disse que homens e
mulheres, pés descalços e xaile aos ombros, seriam incapazes de mudar mentalidades
e passar de um ‘obrigatório’ ofício de matadores ao superior estatuto de
redentores das espécies?...
Pois, se alguém o disse enganou-se redondamente.
Bastaria rumar ao extremo leste da ilha, nos idos de 1990, e aí constatar in loco e ao vivo a revolução cultural que se operou na mente e no coração das
gentes do Caniçal.
Refiro-me
ao novo olhar daquela população sobre o mundo dos cetáceos, então ‘turistas’
bemvindos àquele mar e que deixavam em terra produtos e divisas nacionais e
estrangeiras, fundo de maneio à economia local e regional. A indústria baleeira
ali sediada foi, sem sombra de dúvida, um generoso sustentáculo de muitas
famílias de pescadores. Era o tempo da caça às baleias, uma vida dura, agreste,
cheia tanto de perigo como de arte, desde o foguete-pregoeiro da presença do
mamífero gigante até à destreza do arpoador, de quem se exigia uma perícia
superior ao do cavaleiro tauromáquico. Recordo (acompanhei vária vezes, não sem
um arrepio até à medula) o arrastar do real monstro marinho pela rampa acima
para ser ‘barbaramente’ esquartejado (logo o sangue escorrendo rampa-abaixo) e, depois, destinado às fases processuais de
transformação industrial.
Não vou ocupar-me do histórico, longo e
rico, da indústria baleeira na ilha. Apenas desejo colocar no vértice
civilizacional daquela freguesia a metamorfose assumida pela população que,
após a proibição oficialmente decretada, viu com espanto entusiástico e plena
concordância a deposição do ’machado de guerra’ e, em seu lugar, erguer-se
um trono onde ficou perpetuada a
homenagem aos cetáceos. Na altura, recordo-me de ter dito que
“ o Caniçal fora o cadafalso da
baleia, doravante será o altar da baleia”. Compete aqui
relevar que ‘alma, coração e vida’ deste projecto foi Eleutério Reis, líder
nato no ramo baleeiro e primeiro director do Museu. Pela sua acção dinâmica,
incansável, o Museu da Baleia foi um polo aglutinador de biólogos e
investigadores marítimos, cineastas e publicistas de Portugal e estrangeiro.
Foi ontem a comemoração do trigésimo
aniversário da instituição, agora instalada em digno e, até, sumptuoso
estabelecimento público. Uma efeméride que brilhou pela sua simplicidade
endémica, tal como no dia da sua abertura (e não inauguração), há três décadas.
Seja-me permitido sintetizar a transformação ideo-empírica da população relativamente
aos cetáceos numa única frase que então pronunciei perante entidades oficiais e
pescadores: “Até ontem, a baleia foi pão
para o corpo; a partir de hoje, será pão para o espírito”.
Aproveito
a oportunidade para agradecer à Câmara Municipal de Machico o exemplar que,
pela mão da vereadora da Cultura, drª. Mónica Vieira me foi entregue, de uma bem cuidada edição (“TRINTA ANOS, Memórias”, da actual direcora, drª. Ana Teresa Menezes de Nóbrega),
respigando, com a devida vénia, um excerto da imprensa madeirense, onde a jornalista Eker Melim escreve: “O presidente da edilidade dirigiu palavras
de elogio a Jorge Moreira, ex-presidente da CMM, que foi quem tomou a
iniciativa deste museu”.
Pouco
importa o meu discurso para o caso. Mas devo partilhar o meu íntimo prazer
intelectual e moral ao ler esta reportagem de há 30 anos. Com efeito, foi no
meu mandato que se construiu a primeira sede do Museu, mas quem lançou a ideia
fora o meu antecessor, dr. Jorge Moreira de Sousa. Para melhor esclarecimento,
éramos de posições político-administrativas completamente opostas. Mas nada me impediu
de dar o seu a seu dono. E a construção da vida e da sociedade deveria
pautar-se por este guião: Cada qual faz a sua parte. E, fazendo cada um a sua
parte, fica a obra completa!
Já o dissera Fernando Pessoa: “Deus quer,
o Homem sonha, a Obra nasce”.
29.Mai.21
Martins
Júnior
(Na
gravura, Eleutério Reis, Martins Júnior, João Carlos Abreu, então secretário
regional de Turismo e Cultura, convidado oficial, assinando o Livro de Honra).
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