segunda-feira, 19 de julho de 2021

UMA FICÇÃO INÚTIL… FALO DO QUE VI!

                                                                       




Foi deveras enternecedor o brunch (passe o anglicismo) servilmente servido às 15 horas num salão, dito nobre, que um corredor separa de um redondo amarelado-cerúleo, dito parlamento regional. Corpos enfatuados, corações a baloiçar por detrás das gravatas furta-cores, e uma mão-cheia de bocas bebendo e resfolegando redacçõezinhas feitas na noite da véspera. Ressalve-se a elevação corajosa de três tribunos deputados. Quanto ao mais, uma pia liturgia encadernada, mastigada, repetidamente embalsamada. A avaliar pelo ritual, se lhe chamassem velório quadraria melhor àquilo que apelidaram de 45º aniversário da Assembleia Legislativa da RAM.

         O ‘menú’ já estava irremediavelmente talhado: Autonomia!

         Há 45 anos sem saber outra coisa. Nascida num paiol de pólvora e baptizada com a sotaina da Igreja (como tenho demonstrado em blogs

anteriores) a Autonomia tem sido despida, travestida, retalhada, partida e repartida, pintada e caiada e rebocada, de tantas modas e modos que hoje nem se lhe reconhece a verdadeira face, nem para que serve. Alguém que o bolor já lá tem disse um dia que “a Madeira é uma prostituta fina”. Isso mesmo fizeram da Autonomia: caçaram-na os antes-inimigos dela, esventraram-na, serviram-se dela como tribais famintos e encarceram-na no tal redondo amarelado.

         Falo do que vi. Em vez do seu trono de legislador isento e sentinela vigilante, tiraram-lhe a arma, cortaram-lhe a voz, decapitaram-lhe a alma e para ali ficou como escrava de quem lhe devia vassalagem e respeito. Fizeram dela um poço estagnado e inerte da Quinta-Vigia. Sem identidade, sem matriz, sem conta própria.

         Falo do que vi. Do desprezo pela Casa das Leis, roçando a boçalidade, das paranóias e esgares saídos, desbragados, dos charutos etilizados diante de todos os deputados. Falo dos inquéritos abafados, entre os quais o roubo das famosas pratas, a expulsão do deputado que publicamente denunciou os encobridores e, por isso, respondeu nos tribunais em processo movido pelos donos do redondo, tendo voltado depois, vitorioso, ao seu lugar de deputado.

Falo do que vi. Das vezes que foi preciso acordar à cama ou a procurá-los na noite funchalense os deputados da maioria para perfazerem o “quórum” necessário à votação de documentos imprescindíveis ao regular funcionamento da instituição.

Ali foram perpetradas agressões físicas, com o conluio  cobarde de funcionários industriados pelos chefes, chegando-se ao ponto de temer-se pela própria segurança circular nas primitivas instalações da Avenida Zarco. Incontáveis as agressões verbais da maioria, insultuosas, peçonhentas, irracionais, em cima de uma minoria indefesa, porque, ao pedido regimental de defesa, a resposta do presidente era bastas vezes um riso alarve, cínico, recachado no grosso cadeirão da grossa maioria. Mas sempre houve alguém (eu já não estava lá)  que abanou o cadeirão e o seu ocupante, depenando-lhe as plumas ‘vai 13’  de pavão arvorado em golias do redondo.

Falo do que vi. De um Presidente, propositadamente maiúsculo, que soube dirigir um parlamento dentro das estritas normas regimentais, fosse qual o deputado interveniente. E, por isso, por ter recusado a palavra a quem se julgava régulo, exterior, na Casa das Leis, foi coercivamente retirado numa votação feita à medida. Por isso, ficaste Grande, por mérito próprio, Emanuel Rodrigues, na história de Machico e na história da Madeira!

Vi mais. Vi que o troféu maior da subserviência do parlamento à quinta vigia consistiu em cuspir no prato onde comeu. Por outras palavras, esta Autonomia fez o mais ingrato embuste, metamorfose contra-natura: transformou o 25 de Abril de 1974 no 28 de Maio de 1926 !!! Sim, viu-se, toda a Madeira viu a proibição de comemorar, em sua morada genuína, o libertador “Dia 25 de Abril”, substituindo-o pela “festa”  do 24 de Abril.

Por isso, este parlamento nunca foi mais que uma ficção inútil e perigosa. Monta-se na dita Autonomia e branqueia (ou amareleja) todos os absurdos que sirvam para camuflar-se e aguentar-se acocorado, inclusive, levando ao trono (da ficção) um presidente mínimo, de uma facção mínima e perdedora.

Esta sensaboria pastosa da Autonomia nem foi capaz de disfarçar-se, mesmo mudando para os ouropéis de um salão, dito nobre. Do Senhor Presidente da República respiguei a mesma sensação de anomia, não só pela brevidade do texto, mas pelo discurso duplicado (que interpretei irónico) decalcado da maioria. Sublinhei a magia semântica do Professor quando, contando com a desatenção ou iliteracia dos ‘maiores’, fez a habilidosa referência ao “personificador singular de quase 40 anos de vida política da Madeira”. O mesmo que: “petit-salazar”. Bonito!

Falei um pouco daquilo que vi. E de tudo, ficou-me esta convicção, consolidada pelo tempo e pela observação directa: Quanto mais autonomia houver para essa classe dominadora, menos Autonomia terá o madeirense comum, as câmaras, as juntas, as colectividades de base, menos autónomo será o Povo!    

      

         19.Jul.21

         Martins Júnior

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