Foi
deveras enternecedor o brunch (passe
o anglicismo) servilmente servido às 15 horas num salão, dito nobre, que um
corredor separa de um redondo amarelado-cerúleo, dito parlamento regional.
Corpos enfatuados, corações a baloiçar por detrás das gravatas furta-cores, e
uma mão-cheia de bocas bebendo e resfolegando redacçõezinhas feitas na noite da
véspera. Ressalve-se a elevação corajosa de três tribunos deputados. Quanto ao
mais, uma pia liturgia encadernada, mastigada, repetidamente embalsamada. A
avaliar pelo ritual, se lhe chamassem velório quadraria melhor àquilo que apelidaram
de 45º aniversário da Assembleia Legislativa da RAM.
O ‘menú’ já estava irremediavelmente
talhado: Autonomia!
Há 45 anos sem saber outra coisa.
Nascida num paiol de pólvora e baptizada com a sotaina da Igreja (como tenho
demonstrado em blog’s
anteriores)
a Autonomia tem sido despida, travestida, retalhada, partida e repartida,
pintada e caiada e rebocada, de tantas modas e modos que hoje nem se lhe reconhece
a verdadeira face, nem para que serve. Alguém que o bolor já lá tem disse um
dia que “a Madeira é uma prostituta fina”. Isso mesmo fizeram da Autonomia:
caçaram-na os antes-inimigos dela, esventraram-na, serviram-se dela como
tribais famintos e encarceram-na no tal redondo amarelado.
Falo
do que vi. Em vez do seu trono de legislador isento e sentinela vigilante,
tiraram-lhe a arma, cortaram-lhe a voz, decapitaram-lhe a alma e para ali ficou
como escrava de quem lhe devia vassalagem e respeito. Fizeram dela um poço
estagnado e inerte da Quinta-Vigia. Sem identidade, sem matriz, sem conta
própria.
Falo do que vi. Do desprezo pela Casa
das Leis, roçando a boçalidade, das paranóias e esgares saídos, desbragados,
dos charutos etilizados diante de todos os deputados. Falo dos inquéritos
abafados, entre os quais o roubo das famosas pratas, a expulsão do deputado que
publicamente denunciou os encobridores e, por isso, respondeu nos tribunais em
processo movido pelos donos do redondo, tendo voltado depois, vitorioso, ao seu
lugar de deputado.
Falo
do que vi. Das vezes que foi preciso acordar à cama ou a procurá-los na noite
funchalense os deputados da maioria para perfazerem o “quórum” necessário à votação
de documentos imprescindíveis ao regular funcionamento da instituição.
Ali
foram perpetradas agressões físicas, com o conluio cobarde de funcionários industriados pelos
chefes, chegando-se ao ponto de temer-se pela própria segurança circular nas
primitivas instalações da Avenida Zarco. Incontáveis as agressões verbais da
maioria, insultuosas, peçonhentas, irracionais, em cima de uma minoria
indefesa, porque, ao pedido regimental de defesa, a resposta do presidente era
bastas vezes um riso alarve, cínico, recachado no grosso cadeirão da grossa
maioria. Mas sempre houve alguém (eu já não estava lá) que abanou o cadeirão e o seu ocupante,
depenando-lhe as plumas ‘vai 13’ de
pavão arvorado em golias do redondo.
Falo
do que vi. De um Presidente, propositadamente maiúsculo, que soube dirigir um
parlamento dentro das estritas normas regimentais, fosse qual o deputado interveniente.
E, por isso, por ter recusado a palavra a quem se julgava régulo, exterior, na
Casa das Leis, foi coercivamente retirado numa votação feita à medida. Por
isso, ficaste Grande, por mérito próprio, Emanuel Rodrigues, na história de
Machico e na história da Madeira!
Vi
mais. Vi que o troféu maior da subserviência do parlamento à quinta vigia consistiu
em cuspir no prato onde comeu. Por outras palavras, esta Autonomia fez o mais
ingrato embuste, metamorfose contra-natura: transformou o 25 de Abril de
1974 no 28 de Maio de 1926 !!! Sim, viu-se, toda a Madeira viu a proibição
de comemorar, em sua morada genuína, o libertador “Dia 25 de Abril”, substituindo-o
pela “festa” do 24 de Abril.
Por
isso, este parlamento nunca foi mais que uma ficção inútil e perigosa. Monta-se
na dita Autonomia e branqueia (ou amareleja) todos os absurdos que sirvam para
camuflar-se e aguentar-se acocorado, inclusive, levando ao trono (da ficção) um
presidente mínimo, de uma facção mínima e perdedora.
Esta
sensaboria pastosa da Autonomia nem foi capaz de disfarçar-se, mesmo mudando para
os ouropéis de um salão, dito nobre. Do Senhor Presidente da República
respiguei a mesma sensação de anomia, não só pela brevidade do texto, mas pelo
discurso duplicado (que interpretei irónico) decalcado da maioria. Sublinhei a
magia semântica do Professor quando, contando com a desatenção ou iliteracia
dos ‘maiores’, fez a habilidosa referência ao “personificador singular de quase 40 anos de vida política da Madeira”. O
mesmo que: “petit-salazar”. Bonito!
Falei
um pouco daquilo que vi. E de tudo, ficou-me esta convicção, consolidada pelo
tempo e pela observação directa: Quanto mais autonomia houver para essa classe
dominadora, menos Autonomia terá o madeirense comum, as câmaras, as juntas, as
colectividades de base, menos autónomo será o Povo!
19.Jul.21
Martins
Júnior
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