terça-feira, 17 de agosto de 2021

TROCA-SE O ORIGINAL PELAS IMITAÇÕES

                                                                                 


Com este tórrido ‘saará’ que nos reveste a pele e atira o vento arenoso pelos olhos adentro, mais a fumaça de cinzas que nos seca a língua e os neurónios, sei que não há margem para grandes investidas teo-filosóficas. Mas não deixarei em claro o filão iniciado no último blog, no que concerne à captação da essência de uma Mulher que, como sempre acontece no caleidoscópio da feminilidade, tem sido desmultiplicada até à exaustão, a nível da iconografia, da estatuária, da mitologia, da mística, do folclore e, quase sempre, do egoísmo interesseiro, assolapado sob a capa de veneração e culto.

Retomo a análise das “Festas do 15 de Agosto”  que os crentes alcunham das “Sete Senhoras” e das milhentas mutações de estirpe, sob os mais mirabolantes títulos, com especial simpatia pelos que envolvem visões, êxtases e esotéricas intuições. Como então fiz notar, o camarim das Festas sobe mais alto, se o título da Homenageada  apresentar-se como trono e bandeira de exaltação patriótica exclusiva do país anfitrião da Sua Imagem.

  Pouco perderia a Senhora com esse turbilhão apoteótico de títulos, se não fora o risco severo de confundir o original com grotescas fotocópias e abusivas imitações. A este propósito, encaixam-se aqui as corajosas, mas judiciosas declarações do bispo brasileiro Manoel Pestana Filho, na diocese de Anápolis: “A liturgia reduz-se, com certa frequência, a uma feira irrelevante de banalidades folclóricas”.

 Para obviar esse perigoso e herético desvio, só há um guia seguro: recorrer ao Original, ou seja, ver o LIVRO, a única fonte histórica que define o perfil e a personalidade de Maria de Nazaré. São escassas as linhas mas, como sucede com as grandes personagens, são de uma transparência iniludível. Ei-las, em breve síntese:

Uma moça judia de dezasseis anos de idade abandona a casa e “dirige-se apressadamente a uma região montanhosa para ajudar nas lides domésticas uma mulher idosa, de nome Isabel que, contra todas as expectativas, encontrava-se grávida do filho João”. Ser-lhe-ia mais cómodo, à rapariga, ficar em casa a orar pelo sucesso do parto. Optou, porém, pelo mais difícil, numa prova de inteira disponibilidade.

Nas saudações que trocaram – jovem e idosa – Maria incluiu uma declaração vigorosa, diria mesmo revolucionária, quando afirma que o seu Deus não é apenas objecto de culto, pelo contrário, pretende intervir para que seja reposta no mundo a justiça distributiva: “Ele abateu os soberbos de coração, derrubou os poderosos dos seus tronos e levantou do chão os humildes. Ele encheu de bens os famintos e, aos ricos avarentos, despediu-os de mãos vazias”. O Deus de Maria não é feirante de arraial que troca ‘milagres’ por velas. Ele apoia e exige acção!

Nas bodas de Caná, está bem patente a fina sensibilidade de Mãe e Líder Doméstica, quando intervém para que não falte o vinho naquela festa de noivos, gente de fracos recursos, de certeza. Mulher inteira, pragmática e atenta às circunstâncias. Mais uma vez, Mulher de acção, dinâmica e generosa, sem complexos sociais inúteis.

Prova maior de intrepidez e resistência à dor física e psicológica não haverá do que uma Mãe que recebe nos braços um Filho assassinado pelos superiores titulares da sacralidade do Templo de Jerusalém. Essa Mulher é a Maria de Nazaré.

Esse é o Original, que o LIVRO perpetuou.

Para quê, então, procurar retalhos, por vezes doentios, incendiários de supostas alternâncias e superstições pró-pagãs, como as que exibem  variantes sem conta da mesma Senhora, cujos mantos, à prova de fogo, correm o risco de se tornarem sorvedouros de círios de altura desmedida?!

No entanto, é meu dever considerar, mesmo sem anuir, as crenças que, ao longo da vida, foram fazendo lastro no subconsciente de cada pessoa. Sempre me marcaram os versos alexandrinos de Guerra Junqueiro, em “A Velhice do Padre Eterno”, dirigidos aos Simples:

“Roubar-vos da vossa alma a vossa crença antiga

Seria como quem roubasse a uma mendiga

As três achas que leva à noite para o lar”.

 

Não obstante todo o respeito pelas mentalidades que se norteiam por outros vectores, não posso terminar sem transcrever o pensamento iluminado do Hans Kung: “Só tem futuro uma religião que mostre o seu rosto filantrópico que atrai, em vez de feições desfiguradas que repelem”.    

 

 

17.Ago.21

Martins Júnior    

1 comentário:

  1. Muito bem, padre! Mas, como comemoram a Senhora do Amparo na sua paróquia? Só com leituras do Livro? (No Brasil há uma paróquia que comemora Aparecida com uma sopa "Sopa de Santa Maria" doada pela Igreja, a milhares de trabalhadores do campo, canavieiros, etc.... mais de 40.000.... sem foguetes, sem luxos mas com com muito amor.... Será isso umas bodas de Caná?

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