Com
este tórrido ‘saará’ que nos reveste a pele e atira o vento arenoso pelos olhos
adentro, mais a fumaça de cinzas que nos seca a língua e os neurónios, sei que
não há margem para grandes investidas teo-filosóficas. Mas não deixarei em
claro o filão iniciado no último blog, no
que concerne à captação da essência de uma Mulher que, como sempre acontece no
caleidoscópio da feminilidade, tem sido desmultiplicada até à exaustão, a nível
da iconografia, da estatuária, da mitologia, da mística, do folclore e, quase
sempre, do egoísmo interesseiro, assolapado sob a capa de veneração e culto.
Retomo
a análise das “Festas do 15 de Agosto” que os crentes alcunham das “Sete Senhoras” e
das milhentas mutações de estirpe, sob os mais mirabolantes títulos, com especial
simpatia pelos que envolvem visões, êxtases e esotéricas intuições. Como então
fiz notar, o camarim das Festas sobe mais alto, se o título da Homenageada apresentar-se como trono e bandeira de exaltação
patriótica exclusiva do país anfitrião da Sua Imagem.
Pouco
perderia a Senhora com esse turbilhão apoteótico de títulos, se não fora o
risco severo de confundir o original com grotescas fotocópias e abusivas imitações.
A este propósito, encaixam-se aqui as corajosas, mas judiciosas declarações do bispo
brasileiro Manoel Pestana Filho, na diocese de Anápolis: “A liturgia reduz-se, com certa frequência, a uma feira irrelevante de
banalidades folclóricas”.
Para obviar esse perigoso e herético desvio,
só há um guia seguro: recorrer ao Original, ou seja, ver o LIVRO, a única fonte
histórica que define o perfil e a personalidade de Maria de Nazaré. São escassas
as linhas mas, como sucede com as grandes personagens, são de uma transparência
iniludível. Ei-las, em breve síntese:
Uma
moça judia de dezasseis anos de idade abandona a casa e “dirige-se apressadamente
a uma região montanhosa para ajudar nas lides domésticas uma mulher idosa, de
nome Isabel que, contra todas as expectativas, encontrava-se grávida do filho
João”. Ser-lhe-ia mais cómodo, à rapariga, ficar em casa a orar pelo sucesso do
parto. Optou, porém, pelo mais difícil, numa prova de inteira disponibilidade.
Nas
saudações que trocaram – jovem e idosa – Maria incluiu uma declaração vigorosa,
diria mesmo revolucionária, quando afirma que o seu Deus não é apenas objecto
de culto, pelo contrário, pretende intervir para que seja reposta no mundo a
justiça distributiva: “Ele abateu os
soberbos de coração, derrubou os poderosos dos seus tronos e levantou do chão
os humildes. Ele encheu de bens os famintos e, aos ricos avarentos, despediu-os
de mãos vazias”. O Deus de Maria não é feirante de arraial que troca ‘milagres’
por velas. Ele apoia e exige acção!
Nas
bodas de Caná, está bem patente a fina sensibilidade de Mãe e Líder Doméstica,
quando intervém para que não falte o vinho naquela festa de noivos, gente de
fracos recursos, de certeza. Mulher inteira, pragmática e atenta às circunstâncias.
Mais uma vez, Mulher de acção, dinâmica e generosa, sem complexos sociais inúteis.
Prova
maior de intrepidez e resistência à dor física e psicológica não haverá do que uma
Mãe que recebe nos braços um Filho assassinado pelos superiores titulares da
sacralidade do Templo de Jerusalém. Essa Mulher é a Maria de Nazaré.
Esse
é o Original, que o LIVRO perpetuou.
Para
quê, então, procurar retalhos, por vezes doentios, incendiários de supostas
alternâncias e superstições pró-pagãs, como as que exibem variantes sem conta da mesma Senhora, cujos mantos,
à prova de fogo, correm o risco de se tornarem sorvedouros de círios de altura
desmedida?!
No
entanto, é meu dever considerar, mesmo sem anuir, as crenças que, ao longo da
vida, foram fazendo lastro no subconsciente de cada pessoa. Sempre me marcaram
os versos alexandrinos de Guerra Junqueiro, em “A Velhice do Padre Eterno”, dirigidos aos Simples:
“Roubar-vos da vossa alma
a vossa crença antiga
Seria como quem roubasse
a uma mendiga
As três achas que leva à
noite para o lar”.
Não
obstante todo o respeito pelas mentalidades que se norteiam por outros
vectores, não posso terminar sem transcrever o pensamento iluminado do Hans
Kung: “Só tem futuro uma religião que mostre o seu rosto filantrópico que
atrai, em vez de feições desfiguradas que
repelem”.
17.Ago.21
Martins Júnior
Muito bem, padre! Mas, como comemoram a Senhora do Amparo na sua paróquia? Só com leituras do Livro? (No Brasil há uma paróquia que comemora Aparecida com uma sopa "Sopa de Santa Maria" doada pela Igreja, a milhares de trabalhadores do campo, canavieiros, etc.... mais de 40.000.... sem foguetes, sem luxos mas com com muito amor.... Será isso umas bodas de Caná?
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