“Senhor Padre, peça a Nosso Senhor
que me leve”…
Era um fio de voz sumida, suspirada ao
meu ouvido, como o vagido de um náufrago perdido num lençol amargo de lágrimas
e dores. Era o mesmo soluço, o mesmo olhar vago de quem vê uma paisagem longe,
apetecida. Umas vezes no vazio de um tugúrio rural, outras vezes no quarto de
um hospital, mas sempre no silêncio-murmurio de uma confidência incontida.
Ao seguir atentamente o debate sobre a “Despenalização
da Eutanásia” no agitado e ruidoso
Parlamento Nacional, soava-me aos ouvidos e batia-me no coração aquela toada
plangente de mendigo sem abrigo às portas da morte sem ter ninguém que lhas
abrisse. E concluí que temas destes não se compadecem com esgares tonitruantes
nem com inflamadas tiradas pseudo-moralistas. O caso – de vida e de morte –
pode configurar-se com aquele dilema que Gilbert Cesbron codificou nestes
termos: “É o drama deste mundo: todos têm razão”.
Não duvido de que a todos os deputados
(e é nestes momentos-crise agónica que se vê o pesadelo e a glória do eleito!) assistem
fundamentos e argumentos, subjectivamente em
consciência para a sua tomada de posição, tanto os favoráveis como os
opositores e os abstencionistas. Mas não é no grito e no acicate verbal que
poderá vislumbrar-se sequer uma nesga de luz ao fundo túnel. Porque o túnel é
interminável e ostenta no arco de entrada este sinal desmobilizador: ”Viagem sem
retorno”!
Confesso que são dois pilares estruturais
– o berço e a sepultura - que sustentam
a ponte onde os meus pés navegam e o meu pensamento voa. Primeiro, porque quase
todos os dias, por dever e missão, tenho de lidar com essas duas realidades.
Segundo, porque são elas que umas vezes abrem clareiras de paz interior, outras
vedam a felicidade de pensar.
Hoje, vou apenas propor uma
hipótese-tentativa de dissecar , à luz de uma interpretação empirista e
simultaneamente transcendente, este
confronto vivo entre o ‘Pró e o Contra’ à
Eutanásia. Reservando para outros desenvolvimentos as infinitas e fabulosas derivas
humanas, ético-jurídicas, filosóficas, teológicas, exporei sumariamente o que
consegui decifrar nesta emaranhada e confusa encruzilhada e que pode sintetizar-se
numa espécie de teorema existencial: o intrincado Dilema entre o Utente e o Agente.
Utente
é
o sujeito impetrante, aquele que, por motivos atendíveis e estritamente
pessoais, pede que alguém lhe encurte um sofrimento insuportável e inútil em
termos de sucesso clínico.
Agente
é o artífice encarregado de concretizar a petição formulada pelo Utente. Se fosse possível acoplar num
mesmo indivíduo as duas funções ou estatutos, diríamos que o Utente incarna o pensamento volitivo e o
Agente significa o braço activo. Um é
o Autor moral, o outro é o Actor instrumental.
Parece não restarem dúvidas de que o
que está em causa, como factor primacial e decisivo, é o superior interesse do
indivíduo, daquele indivíduo, ao qual não se pode negar a última vontade, desde
que balizada em pressupostos legítimos que não cabem aqui analisar.
O grande obstáculo está no Agente. Quem se atreve a aplicar a “vacina letal”?... Chamo-lhe “vacina” porque
assim a entende o Utente para
libertar-se de um cárcere de dores e horrores. Chamo-lhe “letal” porque, em
contradição paradoxal, vai arrancá-lo à liberdade de viver. Quem se atreve? O
Médico, o Enfermeiro ? … Mas como, se eles fizeram o solene juramento de
Hipócrates: agentes da vida e não funcionários da morte?...
Tremendo o ofício do Agente, porque corta a árvore da Vida !
Doloroso
e, o mesmo tempo, glorioso e libertador, porque corta o monstro,
insaciável devorador daquela Vida!
Fico por aqui, com esta hipótese de
conciliação entre os extremos deste dilema. Não na vozearia dos hemiciclos, mas
no recôndito do nosso consciente, juiz invisível das grandes decisões. Ao
pensar no Agente, eu recuso-me a olhá-lo como o algoz de
machado na mão. Vejo-o noutro cenário, como a mão que acode a uma outra mão, a
mão daquele que, no meio das chamas, clama desesperadamente por alguém que lhe
tire daquele incêndio infernal.
Termino, por hoje, com um pensamento
bíblico, do LIVRO, chamado de “Eclesiástico”, onde o escritor profético ousa
publicamente legitimar a petição do Utente:
“Magis mors quam vita amara” – “Mais vale a morte que uma vida amargurada.
Melhor é o repouso eterno que um definhamento sem fim” (capítulo 30, 17).
E
enquanto os decisores oficiais – Parlamentares, Presidentes,
Constitucionalistas – tentam enquadrar o Dilema no Ordenamento Jurídico Português,
batem-me cá dentro os murmúrios salivados que tantas ouvi à cabeceira de tantos
doentes;: “Senhor Padre, peça a Nosso
Senhor que me leve”… Fico depois a pensar: Estará este pré-moribundo Utente pedindo que Deus seja o seu Agente?... Mas este ofício está
consignado aos homens e não a Deus.
05.Nov.21
Martins
Júnior
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