sexta-feira, 5 de novembro de 2021

NA EUTANÁSIA: O DILEMA ENTRE O “UTENTE” E O “AGENTE”

                                                                              


 

“Senhor Padre, peça a Nosso Senhor que me leve”…

         Era um fio de voz sumida, suspirada ao meu ouvido, como o vagido de um náufrago perdido num lençol amargo de lágrimas e dores. Era o mesmo soluço, o mesmo olhar vago de quem vê uma paisagem longe, apetecida. Umas vezes no vazio de um tugúrio rural, outras vezes no quarto de um hospital, mas sempre no silêncio-murmurio de uma confidência incontida.

         Ao seguir atentamente o debate sobre a “Despenalização da Eutanásia”  no agitado e ruidoso Parlamento Nacional, soava-me aos ouvidos e batia-me no coração aquela toada plangente de mendigo sem abrigo às portas da morte sem ter ninguém que lhas abrisse. E concluí que temas destes não se compadecem com esgares tonitruantes nem com inflamadas tiradas pseudo-moralistas. O caso – de vida e de morte – pode configurar-se com aquele dilema que Gilbert Cesbron codificou nestes termos: “É o drama deste mundo: todos têm razão”.

         Não duvido de que a todos os deputados (e é nestes momentos-crise agónica que se vê o pesadelo e a glória do eleito!) assistem fundamentos e argumentos, subjectivamente em consciência para a sua tomada de posição, tanto os favoráveis como os opositores e os abstencionistas. Mas não é no grito e no acicate verbal que poderá vislumbrar-se sequer uma nesga de luz ao fundo túnel. Porque o túnel é interminável e ostenta no arco de entrada este sinal desmobilizador: ”Viagem sem retorno”!

         Confesso que são dois pilares estruturais – o berço e a sepultura - que  sustentam a ponte onde os meus pés navegam e o meu pensamento voa. Primeiro, porque quase todos os dias, por dever e missão, tenho de lidar com essas duas realidades. Segundo, porque são elas que umas vezes abrem clareiras de paz interior, outras vedam a felicidade de pensar.

         Hoje, vou apenas propor uma hipótese-tentativa de dissecar , à luz de uma interpretação empirista e simultaneamente transcendente,  este confronto vivo entre o ‘Pró e o Contra’  à Eutanásia. Reservando para outros desenvolvimentos as infinitas e fabulosas derivas humanas, ético-jurídicas, filosóficas, teológicas, exporei sumariamente o que consegui decifrar nesta emaranhada e confusa encruzilhada e que pode sintetizar-se numa espécie de teorema existencial: o intrincado Dilema entre o Utente e o Agente.

         Utente é o sujeito impetrante, aquele que, por motivos atendíveis e estritamente pessoais, pede que alguém lhe encurte um sofrimento insuportável e inútil em termos de sucesso clínico.

         Agente é o artífice encarregado de concretizar a petição formulada pelo Utente. Se fosse possível acoplar num mesmo indivíduo as duas funções ou estatutos, diríamos que o Utente incarna o pensamento volitivo e o Agente significa o braço activo. Um é o Autor moral, o outro é o Actor instrumental.

         Parece não restarem dúvidas de que o que está em causa, como factor primacial e decisivo, é o superior interesse do indivíduo, daquele indivíduo, ao qual não se pode negar a última vontade, desde que balizada em pressupostos legítimos que não cabem aqui analisar.    

         O grande obstáculo está no Agente. Quem se atreve a aplicar a  “vacina letal”?... Chamo-lhe “vacina” porque assim a entende o Utente para libertar-se de um cárcere de dores e horrores. Chamo-lhe “letal” porque, em contradição paradoxal, vai arrancá-lo à liberdade de viver. Quem se atreve? O Médico, o Enfermeiro ? … Mas como, se eles fizeram o solene juramento de Hipócrates: agentes da vida e não funcionários da morte?...

         Tremendo o ofício do Agente, porque corta a árvore da Vida !

         Doloroso e, o mesmo tempo, glorioso e libertador, porque corta o monstro, insaciável  devorador daquela Vida!

         Fico por aqui, com esta hipótese de conciliação entre os extremos deste dilema. Não na vozearia dos hemiciclos, mas no recôndito do nosso consciente, juiz invisível das grandes decisões. Ao pensar no Agente, eu recuso-me a olhá-lo como o algoz de machado na mão. Vejo-o noutro cenário, como a mão que acode a uma outra mão, a mão daquele que, no meio das chamas, clama desesperadamente por alguém que lhe tire daquele incêndio infernal.

         Termino, por hoje, com um pensamento bíblico, do LIVRO, chamado de “Eclesiástico”, onde o escritor profético ousa publicamente legitimar a petição do Utente: “Magis mors quam vita amara” – “Mais vale a morte que uma vida amargurada. Melhor é o repouso eterno que um definhamento sem fim” (capítulo 30, 17).

         E enquanto os decisores oficiais – Parlamentares, Presidentes, Constitucionalistas – tentam enquadrar o Dilema no Ordenamento Jurídico Português, batem-me cá dentro os murmúrios salivados que tantas ouvi à cabeceira de tantos doentes;: “Senhor Padre, peça a Nosso Senhor que me leve”… Fico depois a pensar: Estará este pré-moribundo Utente pedindo que Deus seja o seu Agente?... Mas este ofício está consignado aos homens e não a Deus.   

        

05.Nov.21

         Martins Júnior

Sem comentários:

Enviar um comentário