A
sala era nobre, o salão enorme, a lotação
molecular, enfim, o planeta cheio, mais cheio que um ovo, o planeta era
o ovo. Os oradores - uma tribuna circular de psicólogos, psiquiatras, teólogos,
moralistas, genealogistas, obstetras, ginecologistas, parteiras serranas,
sociólogos – trepavam as ondas do tempo para apresentar cada qual a sua
prestação ao congresso. O congresso
tinha por fundo uma caverna de horrores, depois de passar pelo vale das
lágrimas e a pela arena dos humanos tribais: a violência – esta requalificada
pelo agridoce verniz de “doméstica”, hoje particularmente contra o inadequadamente
denominado o elo mais fraco, a Mulher.
Alguém,
um velho de longas melenas tisnadas pelos sóis de outras eras, pede a palavra
(não fazia parte do elenco palestrante) e, preso ao bordão com o mesmo afã de
quem agarra um microfone, desaba:
“Perdoem-me,
senhoras e senhores, sábios especialistas em todos os saberes e poderes da
violência doméstica. Não frequentei cursos, nunca defendi teses, nunca subi ao
pódio das academias para ser coroado com os louros da sabedoria dos deuses. Só
sei o caso que vos vou contar:
Era uma vez…
Oh
como se amavam esses dois bucólicos apaixonados, com juras de eterno amor e
mística aliança de paz sem fim! Para selar o mago enlace, consumaram o acto
criador que jorra das fontes do Génesis Primeiro. Ele feliz pela esperança do
amanhã, ela encantada por trazer no seio o cântico novo da harmonia universal,
o bolbo promissor da paz global!
Mas,
enquanto à superfície o silêncio dos afagos cobria o mundo, lá dentro – no dentro
dela – dois irmãos gémeos abriam as paralelas da vida, inicialmente em perfeita
sintonia, depois em toques oblíquos de linhas concorrentes. ‘Eu sou o mais
forte porque nasci do espermatozoide’, dizia um, ‘Mas eu sou o maior porque
esta casa é o óvulo de onde vim” –
reclamava o outro.
Passaram-se dias e noites, meses a fio,
em que a mãe sentia por vezes um ligeiro baque à flor da pele e até pedia ao
marido para aconchegar o ouvido ao seu seio, a ver se conseguia traduzir o ‘debate’
que lá dentro acontecia ou, ao menos,
parecia. Bastas vezes, os dois nascituros chegavam à empírica conclusão: ’Somos
um só, somos irmãos, habitamos a mesma casa e quando sairmos daqui sairemos
juntos’. Por mais que cantassem juntos o
fraterno estribilho, a verdade é que logo saltava o signo da diferença: ‘Eu sou
o maior e tu estás ocupando um espaço que é meu’, ao que o outro ripostava; ’Mas
eu sou o melhor, porque é assim’.
Aqui, o velho cronista arfou, de
surpresa, para concluir: ‘Depois que rasgaram a fronteira da Vida, os dois
gémeos trouxeram para fora o campo escondido em que os dois lá dentro se digladiavam
desde a sua concepção. E assim deram origem ao ancestral aforismo: “Todos
iguais e todos diferentes”.
‘E
mais não digo, suspirou o ancião, levantando estranhamente o tom de voz, em
rasgo de protesto: “Quem tem ouvidos de entender, que entenda”. Tendes Caim e
Abel, desde os alvores da humanidade. Ilustres e abalizados especialistas do
tema, não procureis fora o que tendes dentro de vós. A paz e a violência nascem
na mesma alcova. Aos genes da violência, requalificai-os, portas adentro. Aos
génios da fraternidade, elevai-os até cobrir os vossos telhados, as vossas
ruas, as vossas paisagens, o vosso ‘habitat’!
Eis
o pequeno - Grande! – passo para neutralizar todas as guerras da violência doméstica!
25.Nov.21
Martins Júnior
"Magister dixit!" Parabéns....
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