quinta-feira, 25 de novembro de 2021

“GUERRA E PAZ” – O ROMANCE TOSTOIANO ENTRE QUATRO PAREDES

                                                                               


A sala era nobre, o salão enorme, a lotação  molecular, enfim, o planeta cheio, mais cheio que um ovo, o planeta era o ovo. Os oradores - uma tribuna circular de psicólogos, psiquiatras, teólogos, moralistas, genealogistas, obstetras, ginecologistas, parteiras serranas, sociólogos – trepavam as ondas do tempo para apresentar cada qual a sua prestação ao congresso.  O congresso tinha por fundo uma caverna de horrores, depois de passar pelo vale das lágrimas e a pela arena dos humanos tribais: a violência – esta requalificada pelo agridoce verniz de “doméstica”, hoje particularmente contra o inadequadamente denominado o elo mais fraco, a Mulher.

Alguém, um velho de longas melenas tisnadas pelos sóis de outras eras, pede a palavra (não fazia parte do elenco palestrante) e, preso ao bordão com o mesmo afã de quem agarra um microfone, desaba:

“Perdoem-me, senhoras e senhores, sábios especialistas em todos os saberes e poderes da violência doméstica. Não frequentei cursos, nunca defendi teses, nunca subi ao pódio das academias para ser coroado com os louros da sabedoria dos deuses. Só sei o caso que vos vou contar:

Era uma vez…

Oh como se amavam esses dois bucólicos apaixonados, com juras de eterno amor e mística aliança de paz sem fim! Para selar o mago enlace, consumaram o acto criador que jorra das fontes do Génesis Primeiro. Ele feliz pela esperança do amanhã, ela encantada por trazer no seio o cântico novo da harmonia universal, o bolbo promissor da paz global!

Mas, enquanto à superfície o silêncio dos afagos cobria o mundo, lá dentro – no dentro dela – dois irmãos gémeos abriam as paralelas da vida, inicialmente em perfeita sintonia, depois em toques oblíquos de linhas concorrentes. ‘Eu sou o mais forte porque nasci do espermatozoide’, dizia um, ‘Mas eu sou o maior porque esta casa é o óvulo de onde vim” –

 reclamava o outro.

         Passaram-se dias e noites, meses a fio, em que a mãe sentia por vezes um ligeiro baque à flor da pele e até pedia ao marido para aconchegar o ouvido ao seu seio, a ver se conseguia traduzir o ‘debate’ que  lá dentro acontecia ou, ao menos, parecia. Bastas vezes, os dois nascituros chegavam à empírica conclusão: ’Somos um só, somos irmãos, habitamos a mesma casa e quando sairmos daqui sairemos juntos’. Por  mais que cantassem juntos o fraterno estribilho, a verdade é que logo saltava o signo da diferença: ‘Eu sou o maior e tu estás ocupando um espaço que é meu’, ao que o outro ripostava; ’Mas eu sou o melhor, porque é assim’.

         Aqui, o velho cronista arfou, de surpresa, para concluir: ‘Depois que rasgaram a fronteira da Vida, os dois gémeos trouxeram para fora o campo escondido em que os dois lá dentro se digladiavam desde a sua concepção. E assim deram origem ao ancestral aforismo: “Todos iguais e todos diferentes”.

‘E mais não digo, suspirou o ancião, levantando estranhamente o tom de voz, em rasgo de protesto: “Quem tem ouvidos de entender, que entenda”. Tendes Caim e Abel, desde os alvores da humanidade. Ilustres e abalizados especialistas do tema, não procureis fora o que tendes dentro de vós. A paz e a violência nascem na mesma alcova. Aos genes da violência, requalificai-os, portas adentro. Aos génios da fraternidade, elevai-os até cobrir os vossos telhados, as vossas ruas, as vossas paisagens, o vosso ‘habitat’!

Eis o pequeno - Grande! – passo para neutralizar todas  as guerras da violência doméstica!

 

25.Nov.21

Martins Júnior

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