Enquanto
no pequeno país se alarga o Grande Circo – aquela arena que não se farta de
sangue fresco, entre velhos arqui-inimigos e entre crias da mesma mamada –
enquanto isso, chegam-nos ecos de maiores ‘faenas’
que nos atiram contra a parede, que nos atordoam, até fazer-nos pensar
maduramente sobre as mais absurdas metamorfoses da biologia política.
Muito em compacto, apenas três “tiros”
fortuitos, mas que poderiam alastrar-se por milhares ou milhões em todo o tempo
e em todo o território. O primeiro e mais candente vem da Nicarágua, essa nesga
do globo tão massacrada pelos ‘Somoza’, de cuja ditadura foi libertada pelo
então herói Daniel Ortega, membro da “Frente Sandinista de Libertação Nacional”.
Foi ele proposto ao mundo como o Grande Libertador, indesmentível bandeirante
da Democracia contra o monstro da opressão e da corrupção. Chegam-nos, porém, as horrendas, inacreditáveis notícias: ‘Daniel
Ortega acaba de ganhar as eleições para um quarto mandato consecutivo, somado às
décadas em que está no poder. De libertador tornou-se ditador, mantendo
milhares presos políticos”. Como, como é
possível tamanha monstruosidade comportamental
no mesmo sistema e, pior, na mesma pessoa?!...
O segundo episódio traz a marca da
feminilidade. Trata-se da heroína Aung
Sansuu Kyi, líder do povo birmanês, uma vida de coerência e resistência contra
a ditadura militar de Myanmar.
Perseguida e presa, mesmo depois de ter ganho as eleições, conquistou
merecidamente o Prémio Nobel da Paz. No entanto (‘no mais fino pano cai a nódoa’)
a etnia muçulmana, ostracizada no norte do país, foi sujeita às mais cruéis
sevícias sob as Forças Armadas, que assassinaram 25.000 rowinga’s e provocaram 700.000
refugiados. E a líder do seu país, já então
regressada ao poder, protagonizou um horroroso fenómeno de genocídio em pleno
século XXI. Como é possível?...
Um terceiro paradoxo, Abiy Ahmed,
personagem de topo na emancipação do povo etíope, promotor da liberdade, da
educação, pacifista convicto, foi também
galardoado com o Prémio Nobel da Paz em 2019. Notícias mais recentes, dão-no-lo
como chefe militar entre guerras fronteiriças, obrigando o seu exército a pegar
em armas. Como foi possível a um Promotor da Paz postergar tão nobre estatuto e
trocá-lo como fautor da guerra?...
Por um estranho avatar, muitos são
aqueles que despem a túnica branca do Anjo e vestem o camuflado eriçado do
monstro! Tendo derrubado regimes ditatoriais, erguem a bandeira da Democracia
nas ameias do Castelo da Liberdade, como
se fora propriedade sua, mas depois, entrincheirados lá dentro, engendram (oh
maquiavélica sina!) os novos e hediondos fantasmas da ditadura. Podia aqui
citar bandos desses ‘exemplares’, talvez aqui mesmo perto de nós. Parafraseando
Jean Jacques Rousseau (O homem nasce bom,
a sociedade é que o corrompe) direi: O político nasce bom, bem
intencionado, o poder é que o corrompe e deforma.
Quem poderá barrar-lhes o passo e
neutralizar os mísseis letais que caem, coloridos como prendas de Natal, na
lareira, na sala, até no nosso quarto de dormir, sem darmos por isso?...
Sem darmos por isso! Essa é a questão e
essa é que é a resposta: pé ante pé, deixamos o ditador entrar, sentar-se à nossa mesa (sempre sem darmos por
ele…) beber do nosso vinho novo. E
quando acordamos é que descobrimos os “vampiros” a que demos guarida, como bem
avisou José Afonso.
Só o Povo – e mais ninguém – pode evitar
que os anjos se transformem em monstros!
09.Nov.21
Martins
Júnior
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