sexta-feira, 7 de janeiro de 2022

DESPEDIDA DA “JANGADA DE BASALTO”

                                                                       


Com o final dos “Reis” finam-se os festejos transitivos entre 2021 e 2022. Quer dizer que a mítica e tão almejada dupla “Natal/Ano Novo” fica confinada durante doze meses, não pelo ‘clássico’ vírus-19 mas pela repetida e sempre renovada coreografia de Maestro Tempo.

Mas antes que tudo fique em cinzas, como em Quarta-Feira de Carnaval – o dilúvio da luz trepando e descendo montanhas, a anestesia estelar dos túneis improvisados na cidade, os gigantones imagéticos tão desfasados da lapinha madeirense – enfim, antes que tudo se evapore, apraz-me registar algo e fixá-lo aqui, com o mesmo afã e carinho com que se guarda um fio de água de cristal  perdido num chão agreste.

     Imagine-se um mar vasto, sem linha de horizonte. Dentro dele navega um volume imponente, a quilha da proa abrindo cascatas de azul transformadas em festival de ondas virgens, sereias de antigos mitos, sedutoras dos argonautas de Ulisses.

Ei-la que passa à nossa frente, a Jangada, e até afrouxa a marcha para êxtase dos nossos olhos. Prende-nos logo o maciço da arquitectura naval, feita de pedra basáltica, onde assentam nove conveses simétricos em ascensão, convergindo todos no último convés, o mais pequeno que mantém a configuração miniatural do primeiro, mas o mais vistoso e soberano. À primeira vista, surpreende-nos com a mesma imponência e majestade de um transatlântico cruzeiro sulcando os oceanos.

São nove os decks ou balaustradas iluminadas, mas quem nelas assoma não tem traje humano nem fisionomia de exótico turista. Toma-lhes o lugar uma mui diversa estirpe terreal: o ouro da família citrina, laranjas, tangerinas no primeiro anel. Mais acima o verde-escarlate dos azevinhos, a fofa doçura dos musgos e líquenes inseparáveis do basalto, a leveza esvoaçante das estrelícias e, no topo do derradeiro tombadilho, as  sumarentas, orgulhosas maçãs coroando o elenco dos bizarros viajantes da Jangada.

Se nos surpreende, ao mesmo tempo nos intriga este vaso gigante que perpassa sereno no vasto Atlântico. Se olharmos, porém, para o mastro alto do navio, no lugar da gávea marítima, cresce jovem e a todos abraça um dos ex-libris mais representativos do que somos e do onde estamos. É ele que nos diz que naquele cruzeiro somos nós que também lá navegamos. O símbolo altaneiro, bandeira da Grande Nau, chama-se e abrilhanta-se para todo o mundo como a raiz e o fruto mais saboroso, elixir dos deuses: Sua Doçura Real, a Bananeira.

Eis-nos, pois, decifradores do enigma da JANGADA DE BASALTO. Desde a popa até ao arco da proa, lê-se, a estibordo, o perímetro de toda a extensão territorial entre a Ponta (ou Porto) do Moniz até à Ponta de São Lourenço, com o Porto Santo à ilharga. Para sinalizar cada centralidade, lá estão os estandartes  de todos os concelhos visivelmente implantados em todo o cenário flutuante, com especial e justificado destaque para as bandeiras de Machico e da Madeira.

Mas a Jangada tem astrolábio e destino marcado: o Mar da Galileia e, mais adentro, a Gruta de Belém. Por isso, ela inscreve no enorme Casco a permuta dos presentes entre a Ilha-Jangada e o ‘Rei’ da Manjedoura: das flores e frutos que transporta espera receber os supremos Dons Imateriais que Jesus-Menino lhe outorga, à Ilha e à História. Eles brilham  no bojo acolhedor do navio: Conhecimento, Fortaleza, Conselho, Perdão, Fraternidade, Justiça, Paz.

Já descobrimos e já entrámos no registo da misteriosa Grande Nau: “JANGADA DE BASALTO AO ENCONTRO DE BELÉM”.

Lá dentro, alguém quis saber a razão dos nove conveses daquela arquitectura naval. E do mais fundo do porão veio “o engenho e a arte” da exacta solução: nove os meses de gestação no seio de Maria, nove as Missas do Parto, nove Luas ao encontro do Sol Nascente.

Nesta breve anatomia da nossa JANGADA, construída à escala, talhada à orografia da orla marítima, em que o amor à Causa, a paixão telúrica e o empenho da Juventude da Ribeira Seca falaram mais alto que o esforço investido, quero deixar os mais saborosos Parabéns, na esteira do velho provérbio: “A melhor recompensa do dever cumprido é ter cumprido esse dever”!

Finalmente e porque “Jangada” é nomenclatura que vem de longe, associamo-nos ao Centenário de José Saramago, prestando homenagem ao título que nos serviu de mote, a famosa “JANGADA DE PEDRA”. (1986).

 Mas a “JANGADA DE BASALTO” não terminou o seu roteiro. Ela continua, mundo fora, nos nossos emigrantes e em todos quantos fazem da Ilha uma estação mais luminosa, mais criativa, mais Imaterial. Por isso, a nossa Jangada balança nas ondas do “Torna Viagem”  (1979) do nosso Horácio Bento de Gouveia e na epopeia rural da “Eternidade” (1933) do imortal Ferreira de Castro.

       

07.Jan.22

Martins Júnior

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