Com o final dos “Reis”
finam-se os festejos transitivos entre 2021 e 2022. Quer dizer que a mítica e
tão almejada dupla “Natal/Ano Novo” fica confinada durante doze meses, não pelo
‘clássico’ vírus-19 mas pela repetida e sempre renovada coreografia de Maestro
Tempo.
Mas antes que tudo fique
em cinzas, como em Quarta-Feira de Carnaval – o dilúvio da luz trepando e
descendo montanhas, a anestesia estelar dos túneis improvisados na cidade, os
gigantones imagéticos tão desfasados da lapinha madeirense – enfim, antes que
tudo se evapore, apraz-me registar algo e fixá-lo aqui, com o mesmo afã e
carinho com que se guarda um fio de água de cristal perdido num chão agreste.
Imagine-se um mar vasto, sem linha de
horizonte. Dentro dele navega um volume imponente, a quilha da proa abrindo
cascatas de azul transformadas em festival de ondas virgens, sereias de antigos
mitos, sedutoras dos argonautas de Ulisses.
Ei-la que passa à nossa
frente, a Jangada, e até afrouxa a marcha para êxtase dos nossos olhos.
Prende-nos logo o maciço da arquitectura naval, feita de pedra basáltica, onde
assentam nove conveses simétricos em ascensão, convergindo todos no último
convés, o mais pequeno que mantém a configuração miniatural do primeiro, mas o
mais vistoso e soberano. À primeira vista, surpreende-nos com a mesma
imponência e majestade de um transatlântico cruzeiro sulcando os oceanos.
São nove os decks ou balaustradas iluminadas, mas
quem nelas assoma não tem traje humano nem fisionomia de exótico turista.
Toma-lhes o lugar uma mui diversa estirpe terreal: o ouro da família citrina,
laranjas, tangerinas no primeiro anel. Mais acima o verde-escarlate dos
azevinhos, a fofa doçura dos musgos e líquenes inseparáveis do basalto, a
leveza esvoaçante das estrelícias e, no topo do derradeiro tombadilho, as sumarentas, orgulhosas maçãs coroando o
elenco dos bizarros viajantes da Jangada.
Se nos surpreende, ao
mesmo tempo nos intriga este vaso gigante que perpassa sereno no vasto
Atlântico. Se olharmos, porém, para o mastro alto do navio, no lugar da gávea
marítima, cresce jovem e a todos abraça um dos ex-libris mais representativos do que somos e do onde estamos. É
ele que nos diz que naquele cruzeiro somos nós que também lá navegamos. O
símbolo altaneiro, bandeira da Grande Nau, chama-se e abrilhanta-se para todo o
mundo como a raiz e o fruto mais saboroso, elixir dos deuses: Sua Doçura Real,
a Bananeira.
Eis-nos, pois,
decifradores do enigma da JANGADA DE BASALTO. Desde a popa até ao arco da proa,
lê-se, a estibordo, o perímetro de toda a extensão territorial entre a Ponta
(ou Porto) do Moniz até à Ponta de São Lourenço, com o Porto Santo à ilharga. Para
sinalizar cada centralidade, lá estão os estandartes de todos os concelhos visivelmente implantados
em todo o cenário flutuante, com especial e justificado destaque para as
bandeiras de Machico e da Madeira.
Mas a Jangada tem
astrolábio e destino marcado: o Mar da Galileia e, mais adentro, a Gruta de
Belém. Por isso, ela inscreve no enorme Casco a permuta dos presentes entre a
Ilha-Jangada e o ‘Rei’ da Manjedoura: das flores e frutos que transporta espera
receber os supremos Dons Imateriais que Jesus-Menino lhe outorga, à Ilha e à
História. Eles brilham no bojo acolhedor
do navio: Conhecimento, Fortaleza, Conselho, Perdão, Fraternidade, Justiça,
Paz.
Já descobrimos e já
entrámos no registo da misteriosa Grande Nau: “JANGADA DE BASALTO AO ENCONTRO
DE BELÉM”.
Lá dentro, alguém quis
saber a razão dos nove conveses daquela arquitectura naval. E do mais fundo do
porão veio “o engenho e a arte” da exacta solução: nove os meses de gestação no
seio de Maria, nove as Missas do Parto, nove Luas ao encontro do Sol Nascente.
Nesta breve anatomia da
nossa JANGADA, construída à escala, talhada à orografia da orla marítima, em
que o amor à Causa, a paixão telúrica e o empenho da Juventude da Ribeira Seca
falaram mais alto que o esforço investido, quero deixar os mais saborosos Parabéns,
na esteira do velho provérbio: “A melhor recompensa do dever cumprido é ter
cumprido esse dever”!
Finalmente e porque
“Jangada” é nomenclatura que vem de longe, associamo-nos ao Centenário de José
Saramago, prestando homenagem ao título que nos serviu de mote, a famosa
“JANGADA DE PEDRA”. (1986).
Mas a “JANGADA DE BASALTO” não terminou o seu
roteiro. Ela continua, mundo fora, nos nossos emigrantes e em todos quantos
fazem da Ilha uma estação mais luminosa, mais criativa, mais Imaterial. Por
isso, a nossa Jangada balança nas ondas do “Torna Viagem” (1979) do nosso Horácio Bento de Gouveia e na
epopeia rural da “Eternidade” (1933) do imortal Ferreira de Castro.
07.Jan.22
Martins Júnior
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