Não
há tempo para isso, tantas são as derivas da vulgarizada sealy season. Mas é um desafio que ouso fazer, mesmo aos mais incautos:
procurem entre os vultos ou fantasmas, imagens
ou arquétipos (como queiram chamar) do Cristo oficial de que guardam memória,
desde o romântico Jesus Nazareno de Ernesto
Renan, aquele de olhos doces, ao proscrito derrotado do Calvário, procurem
aqueloutro, de rosto afogueado e olhar penetrante, clamando na praça pública ao
povo miúdo e ao palco graúdo: “Eu venho
pegar fogo e o meu desejo é que ele se ateie cada vez mais. E se vós pensais
que eu vim trazer a paz à terra, estais enganados. O que vos trago é guerra.
Mais: se esperais de mim um fazedor de alianças, tirai isso dos vossos
corações, eu venho provocar a divisão, a
luta no meio de vós, até dentro da própria família, entre pais e filhos”.
A
quem tiver dificuldade em encontrar o Autor desta “ameaça”, convido a abrir o
Livro, em Lucas, 12,49-53, aliás, um texto que é proposto aos crentes neste
domingo. Situando-o no contexto coevo, o seu alcance ganha maior sentido e
acuidade ao sabermos que tais palavras foram proferidas quando o Mestre
dirigia-se para a “capital do Império Judaico”, Jerusalém, então colonizada
pelos romanos. Não será difícil descortinar nas imprecações desassombradamente lançadas nesse
percurso uma declaração formal de guerra contra um alvo previamente definido:
os inquilinos sedentários do Templo - os Sumos Pontífices e respectivos comparsas, os fariseus e os
escribas da Lei.
E
porque o conflito de classes e ideologias que essas palavras traduzem
obrigam-nos a ponderar friamente o seu peso, mais que desdobrá-las em
comentários, limito-me apenas a esta pergunta: “E se, na Sé Catedral ou numa
dessas muitas igrejas da ilha, ouvíssemos o próprio Jesus, do alto do púlpito
ou da mesa do altar, proferir as mesmíssimas palavras, qual seria a reacção das
pessoas”?
Não
tenho dúvidas de que o menos que chamar-lhe-iam seria o de louco, desvairado,
blasfemo, terrorista, fascista, comunista, jiahdista. Dos líderes partidários,
da extrema direita à extrema esquerda, sairia a mesma golpada dos fariseus de
Judá: “Este tipo está possesso do diabo”. Para um hermeneuta, porém, intérprete de média cultura, primeiro trataria
de saber o quando, o como e o porquê de tão inusitada ousadia da parte do
Mensageiro da Paz. E logo concluiria que a conquista da Paz nunca advirá por
geração espontânea, antes exigirá uma árdua luta pelo Direito, pela Justiça,
pela Verdade. E quando se vive num planeta ou num terço de terra minados por
armadilhas de injustiças, fraudes e mentiras, mais se impõe uma “guerra sem
tréguas”. Serão múltiplas e diversificadas as estratégias, umas vezes ténues,
outras duras e frontais, mas sem nunca perder de vista que somos todos vítimas
e, em certos casos, co-autores de uma guerra-fria institucionalizada que nos
torna indolentes e, por isso, responsáveis.
Se
alguma colectividade deveria libertar-se desse marasmo entorpecedor em que a sociedade
se deixa afundar, essa colectividade chama-se Igreja. Porque renuncia ao
império do poder e às efémeras negaças do populismo, a Igreja – à semelhança do
seu Fundador – deveria, como Ele, erguer-se com a lança do Arcanjo Libertador,
pela palavra, pelo empenho, pelo testemunho de vida, sem medo de falar e agir
quando estão em causa atributos invendíveis e incomparáveis da Pessoa – o constituinte primário da Igreja, a Pessoa e a
sua salvação global – na estrutura cívica, na conjuntura social, nas lutas pelo
pão, pela saúde, pela educação, pela vida, pela realização inteira do Homem/Mulher.
Não
pode jamais a nossa Igreja permanecer naquele estado de “coma clínico” que, há
1500 anos, um dos maiores génios da hierarquia eclesiástica, Santo Agostinho de
Hipona, denunciava: Ecclesia, casta
meretrix – a Igreja é uma casta prostituta. Interpretando: “casta”, porque
não suja as mãos, não se compromete, afasta-se dos conflitos (laborais, sociais,
ideológicos, políticos). Mas “meretriz”,
porque prostitui-se com os interesses do mundo, por omissão e cobardia. Acabemos com a “greve” de silêncio
desta Igreja tartamuda, pastosa, cúmplice.
Quanto
teria eu a partilhar convosco na fonte deste tema!
Apenas
uma sugestão: para quem se “escandalizou” com as declarações do Bispo Nuno
Brás, na “Festa do Monte”, aconselho a
leitura do texto de Lucas, 12, 49-53.
É
duro, vibrante, avassalador. Mas libertador!
17.Ago.19
Martins Júnior
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