sábado, 17 de agosto de 2019

UM CRISTO GUERREIRO, INCENDIÁRIO ?!


                                                   

Não há tempo para isso, tantas são as derivas da vulgarizada sealy season. Mas é um desafio que ouso fazer, mesmo aos mais incautos:  procurem entre os vultos ou fantasmas, imagens ou arquétipos (como queiram chamar) do Cristo oficial de que guardam memória, desde  o romântico Jesus Nazareno de Ernesto Renan, aquele de olhos doces, ao proscrito derrotado do Calvário, procurem aqueloutro, de rosto afogueado e olhar penetrante, clamando na praça pública ao povo miúdo e ao palco graúdo: “Eu venho pegar fogo e o meu desejo é que ele se ateie cada vez mais. E se vós pensais que eu vim trazer a paz à terra, estais enganados. O que vos trago é guerra. Mais: se esperais de mim um fazedor de alianças, tirai isso dos vossos corações,  eu venho provocar a divisão, a luta no meio de vós, até dentro da própria família, entre pais e filhos”.
A quem tiver dificuldade em encontrar o Autor desta “ameaça”, convido a abrir o Livro, em Lucas, 12,49-53, aliás, um texto que é proposto aos crentes neste domingo. Situando-o no contexto coevo, o seu alcance ganha maior sentido e acuidade ao sabermos que tais palavras foram proferidas quando o Mestre dirigia-se para a “capital do Império Judaico”, Jerusalém, então colonizada pelos romanos. Não será difícil descortinar  nas imprecações desassombradamente lançadas nesse percurso uma declaração formal de guerra contra um alvo previamente definido: os inquilinos sedentários do Templo - os Sumos Pontífices  e respectivos comparsas, os fariseus e os escribas da Lei.
E porque o conflito de classes e ideologias que essas palavras traduzem obrigam-nos a ponderar friamente o seu peso, mais que desdobrá-las em comentários, limito-me apenas a esta pergunta: “E se, na Sé Catedral ou numa dessas muitas igrejas da ilha,  ouvíssemos o próprio Jesus, do alto do púlpito ou da mesa do altar, proferir as mesmíssimas palavras, qual seria a reacção das pessoas”?
Não tenho dúvidas de que o menos que chamar-lhe-iam seria o de louco, desvairado, blasfemo, terrorista, fascista, comunista, jiahdista. Dos líderes partidários, da extrema direita à extrema esquerda, sairia a mesma golpada dos fariseus de Judá: “Este tipo está possesso do diabo”. Para um hermeneuta, porém,  intérprete de média cultura, primeiro trataria de saber o quando, o como e o porquê de tão inusitada ousadia da parte do Mensageiro da Paz. E logo concluiria que a conquista da Paz nunca advirá por geração espontânea, antes exigirá uma árdua luta pelo Direito, pela Justiça, pela Verdade. E quando se vive num planeta ou num terço de terra minados por armadilhas de injustiças, fraudes e mentiras, mais se impõe uma “guerra sem tréguas”. Serão múltiplas e diversificadas as estratégias, umas vezes ténues, outras duras e frontais, mas sem nunca perder de vista que somos todos vítimas e, em certos casos, co-autores de uma guerra-fria institucionalizada que nos torna indolentes e, por isso, responsáveis.
Se alguma colectividade deveria libertar-se desse marasmo entorpecedor em que a sociedade se deixa afundar, essa colectividade chama-se Igreja. Porque renuncia ao império do poder e às efémeras negaças do populismo, a Igreja – à semelhança do seu Fundador – deveria, como Ele, erguer-se com a lança do Arcanjo Libertador, pela palavra, pelo empenho, pelo testemunho de vida, sem medo de falar e agir quando estão em causa atributos invendíveis e incomparáveis da Pessoa – o  constituinte primário da Igreja, a Pessoa e a sua salvação global – na estrutura cívica, na conjuntura social, nas lutas pelo pão, pela saúde, pela educação, pela vida, pela realização inteira do Homem/Mulher.
Não pode jamais a nossa Igreja permanecer naquele estado de “coma clínico” que, há 1500 anos, um dos maiores génios da hierarquia eclesiástica, Santo Agostinho de Hipona, denunciava: Ecclesia, casta meretrix – a Igreja é uma casta prostituta. Interpretando: “casta”, porque não suja as mãos, não se compromete, afasta-se dos conflitos (laborais, sociais, ideológicos, políticos).  Mas “meretriz”, porque prostitui-se com os interesses do mundo, por omissão e  cobardia. Acabemos com a “greve” de silêncio desta Igreja tartamuda, pastosa, cúmplice.
Quanto teria eu a partilhar convosco na fonte deste tema!
Apenas uma sugestão: para quem se “escandalizou” com as declarações do Bispo Nuno Brás, na “Festa do Monte”,  aconselho a leitura do texto de Lucas, 12, 49-53.
É duro, vibrante, avassalador. Mas libertador!

17.Ago.19
Martins Júnior                    

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