Num
ápice, ficou o mundo encadeado e possesso de um estranho visitante que entra em
cena, agarra-nos pelo braço, aperta-nos o pescoço e, como o credor ao devedor -
“paga-me o que deves” - ele nem nos deixa respirar: “agora és meu, não te largo
um instante, nem de noite nem de dia”. Prende-nos o pensamento, os neurónios, a
vida. E assim fica o mundo, feito prisioneiro compulsivo do ‘Covid’. Como se em
nenhum tempo nada mais houvesse além do ‘Covid’. É ele que tem polarizado a
atenção de tudo quanto mexe neste planeta.
Lembra
a ardilosa peça dramática de José Régio, “O Meu Caso” que bem me lembro ter
visto representada, há mais de 60 anos, no palco do então chamado “Liceu Jaime
Moniz”. Curiosamente, também levada à cena, no ano transacto, em Vila do Conde.
Aproveito
esta aragem de descompressão ou desconfinamento para trazer à memória de madeirenses
e machiquenses episódios similares, ocorridos aqui na ilha, ao longo dos 600
anos de viagem atlântica desta mini-“jangada de pedra”. Certo é que as tragédias
insulares confinam-se apenas aos 57mX22m de território. Mas, tal como se diz
que “os homens não se medem aos palmos”, também se apura que os factos não se
medem pela extensão, mas pela profundidade dos seus efeitos.
Basta
pensarmos nos 7014 mortos registados na Madeira entre Junho e Outubro de 1856.
Mais de 1700 mortos/mês !!! Causados também por uma epidemia que, consideradas
as circunstâncias e as carências de então, assumiu proporções pandémicas para
os habitantes irremediavelmente presos aqui
por terra, mar e ar. Foram os soldados do regimento de infantaria nº1, chegados
de Lisboa nos finais de Junho de 1856, que transportaram o mortífero “cólera-morbus”.
O governador não tinha hipótese de metê-los em quarentena, muito menos em
hotéis…
Mas a saga das epidemias vinha de mais longe,
muito longe. Desde o princípio da colonização e povoamento. Compulsando os Anais do Município de Machico,
descobre-se que já em 2 de Maio de 1489,
findo o surto de peste de que foi vítima esta capitania, o Capitão
dirigiu-se ao Funchal para dar conta que “já
não havia mal de contágio e que
mandassem desimpedir os portos”. Noutro âmbito, o das Aluviões, a Madeira
e, mais intensamente Machico, sofreram trágicas consequências da voragem
cíclica das torrentes, concretamente as de 1803, 1815, 1842, todas em Outubro,
1583 em Fevereiro, 1678 em Novembro, etc.. O Autor, José António de Almada,
cita ainda os tufões devastadores, as pragas de gafanhotos, as fomes, as secas e os abalos de terra, sobretudo os do
1º de Abril de 1748 e 1º de Novembro de 1755. É um estendal funéreo a descrição
dos acontecimentos, cuja memória registaram os Anais. Aí se destacam também os heróis, abnegados defensores da
população, inclusive profissionais de saúde que morreram contaminados pelo
mesmo vírus, ao serviço dos infectados!
Há
um aspecto, porém, que importa realçar e que apresenta alguma similitude com os
tempos actuais. À míngua de melhores recursos científicos e tecnológicos, os
nossos antepassados recorriam ao sobrenatural, aos santos protectores. É
sintomático o relato do cronista, a propósito dos esforços impotentes das
autoridades e da população: “Nesse dia 18
de Julho, de tarde, concorreu o povo à igreja de S. Roque e de lá veio uma
procissão de penitência para a igreja matriz onde expuseram à veneração dos
fiéis as imagens de S. Roque, do sr. dos Milagres e do sr. dos Passos”. Mas
de nada serviu, pois que, continua o relator, “A epidemia foi grassando, com aspecto assustador, nos dias subsequentes”.
Mais
impressivo - e revelador da angústia que amarrava os próprios governadores –
aconteceu quando “Em 7 de Fevereiro, o
governador do bispado, a pedido do governador civil, ordenou aos respectivos
párocos que fizessem preces públicas e procissões de penitência”.
Não
resisto a transcrever, dos Anais, o
ofício do governador civil José Silvestre Ribeiro a toda a população, uma
eloquente e comovedora peça de oratória sacra, passível actualmente de alguma
discrepância num dos argumentos propostos, mas indiscutivelmente demonstrativa de um coração apertado entre a
dor e o desespero, face ao sofrimento do povo madeirense. Ei-la:
«Uma philosophia desdenhosa e altiva pergunta nestas circunstancias se a natureza não
obedece por ventura a leis geraes e imprescriptiveis, e argumenta com esse
facto para regeitar a submissão, as supplicas, e as ferverosas orações ao
Omnipotente. Sim, a natureza obedece a leis geraes; mas quem prescreveu essas
leis? Foi Deus. Humilhemo-nos pois ante os seus Decretos, e não nos
envorgonhemos de lhe pedir soccorro nas nossas tribulações. E ainda quado esta
piedosa crença deixasse de assentar em solidas convicções do espirito, conviria
em todo o caso não arrancar aos infelizes a consolação unica, que nos dolorosos
trances da vida pode ter o desgraçado.»
Em
forma de roda-pé e a propósito de datas
históricas e precedências cultuais ou religiosas relacionadas com Machico, os Anais informam que “A Câmara de Machico tomou por Padroeiro o Glorioso S. Roque, na era de
1728, em que a peste afligiu esta ilha da Madeira”. Mais concluso e preciso
é o Anotador dos Anais, ao situar o
lugar da história, afirmando: “São Roque era o santo quase sempre invocado
contra as pestes, tal como São Sebastião. A Câmara pode ter votado São Roque
como padroeiro em 1728, mas pelo menos a capela já existia e a intenção deve
datar desde 1489, quando Machico foi alvo de um surto de peste”.
Enfim,
é bom saber que não estamos sós. Muito antes de nós, outros sofreram iguais e
piores tormentos, nossos antepassados que nos legaram nas ondas mágicas do
tempo exemplos de resistência à dor e de esperança no porvir.
19.Mai.20
Martins Júnior
Sempre bom lembrar.
ResponderEliminarObrigada
.....SABIA QUE QUISERAM TRANSFERIR ESSA CAPELA PARA FAZER UM HOTEL?
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