terça-feira, 19 de maio de 2020

ENTRE “PAN” E “EPI”-DEMIAS: O FADO E O FADÁRIO DE MACHICO


                                                              

Num ápice, ficou o mundo encadeado e possesso de um estranho visitante que entra em cena, agarra-nos pelo braço, aperta-nos o pescoço e, como o credor ao devedor - “paga-me o que deves” - ele nem nos deixa respirar: “agora és meu, não te largo um instante, nem de noite nem de dia”. Prende-nos o pensamento, os neurónios, a vida. E assim fica o mundo, feito prisioneiro compulsivo do ‘Covid’. Como se em nenhum tempo nada mais houvesse além do ‘Covid’. É ele que tem polarizado a atenção de tudo quanto mexe neste planeta.
Lembra a ardilosa peça dramática de José Régio, “O Meu Caso” que bem me lembro ter visto representada, há mais de 60 anos, no palco do então chamado “Liceu Jaime Moniz”. Curiosamente, também levada à cena, no ano transacto, em Vila do Conde.
Aproveito esta aragem de descompressão ou desconfinamento para trazer à memória de madeirenses e machiquenses episódios similares, ocorridos aqui na ilha, ao longo dos 600 anos de viagem atlântica desta mini-“jangada de pedra”. Certo é que as tragédias insulares confinam-se apenas aos 57mX22m de território. Mas, tal como se diz que “os homens não se medem aos palmos”, também se apura que os factos não se medem pela extensão, mas pela profundidade dos seus efeitos.
Basta pensarmos nos 7014 mortos registados na Madeira entre Junho e Outubro de 1856. Mais de 1700 mortos/mês !!! Causados também por uma epidemia que, consideradas as circunstâncias e as carências de então, assumiu proporções pandémicas para os habitantes irremediavelmente  presos aqui por terra, mar e ar. Foram os soldados do regimento de infantaria nº1, chegados de Lisboa nos finais de Junho de 1856, que transportaram o mortífero “cólera-morbus”. O governador não tinha hipótese de metê-los em quarentena, muito menos em hotéis…
 Mas a saga das epidemias vinha de mais longe, muito longe. Desde o princípio da colonização e povoamento. Compulsando os Anais do Município de Machico, descobre-se que já em 2 de Maio de 1489,   findo o surto de peste de que foi vítima esta capitania, o Capitão dirigiu-se ao Funchal para dar conta que “já não havia  mal de contágio e que mandassem desimpedir os portos”. Noutro âmbito, o das Aluviões, a Madeira e, mais intensamente Machico, sofreram trágicas consequências da voragem cíclica das torrentes, concretamente as de 1803, 1815, 1842, todas em Outubro, 1583 em Fevereiro, 1678 em Novembro, etc.. O Autor, José António de Almada, cita ainda os tufões devastadores, as pragas de gafanhotos, as fomes,  as secas e os abalos de terra, sobretudo os do 1º de Abril de 1748 e 1º de Novembro de 1755. É um estendal funéreo a descrição dos acontecimentos, cuja memória registaram os Anais. Aí se destacam também os heróis, abnegados defensores da população, inclusive profissionais de saúde que morreram contaminados pelo mesmo vírus, ao serviço dos infectados!
Há um aspecto, porém, que importa realçar e que apresenta alguma similitude com os tempos actuais. À míngua de melhores recursos científicos e tecnológicos, os nossos antepassados recorriam ao sobrenatural, aos santos protectores. É sintomático o relato do cronista, a propósito dos esforços impotentes das autoridades e da população: “Nesse dia 18 de Julho, de tarde, concorreu o povo à igreja de S. Roque e de lá veio uma procissão de penitência para a igreja matriz onde expuseram à veneração dos fiéis as imagens de S. Roque, do sr. dos Milagres e do sr. dos Passos”. Mas de nada serviu, pois que, continua o relator, “A epidemia foi grassando, com aspecto assustador, nos dias subsequentes”.
Mais impressivo - e revelador da angústia que amarrava os próprios governadores – aconteceu quando “Em 7 de Fevereiro, o governador do bispado, a pedido do governador civil, ordenou aos respectivos párocos que fizessem preces públicas e procissões de penitência”.
Não resisto a transcrever, dos Anais, o ofício do governador civil José Silvestre Ribeiro a toda a população, uma eloquente e comovedora peça de oratória sacra, passível actualmente de alguma discrepância num dos argumentos propostos, mas indiscutivelmente  demonstrativa de um coração apertado entre a dor e o desespero, face ao sofrimento do povo madeirense. Ei-la:
«Uma philosophia  desdenhosa e altiva pergunta  nestas circunstancias se a natureza não obedece por ventura a leis geraes e imprescriptiveis, e argumenta com esse facto para regeitar a submissão, as supplicas, e as ferverosas orações ao Omnipotente. Sim, a natureza obedece a leis geraes; mas quem prescreveu essas leis? Foi Deus. Humilhemo-nos pois ante os seus Decretos, e não nos envorgonhemos de lhe pedir soccorro nas nossas tribulações. E ainda quado esta piedosa crença deixasse de assentar em solidas convicções do espirito, conviria em todo o caso não arrancar aos infelizes a consolação unica, que nos dolorosos trances da vida pode ter o desgraçado.»
Em forma de roda-pé  e a propósito de datas históricas e precedências cultuais ou religiosas relacionadas com Machico, os Anais informam que “A Câmara de Machico tomou por Padroeiro o Glorioso S. Roque, na era de 1728, em que a peste afligiu esta ilha da Madeira”. Mais concluso e preciso é o Anotador dos Anais, ao situar o lugar da história, afirmando: “São Roque era o santo quase sempre invocado contra as pestes, tal como São Sebastião. A Câmara pode ter votado São Roque como padroeiro em 1728, mas pelo menos a capela já existia e a intenção deve datar desde 1489, quando Machico foi alvo de um surto de peste”.
Enfim, é bom saber que não estamos sós. Muito antes de nós, outros sofreram iguais e piores tormentos, nossos antepassados que nos legaram nas ondas mágicas do tempo exemplos de resistência à dor e de esperança no porvir.
19.Mai.20
Martins Júnior      

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