sábado, 23 de maio de 2020

QUEM AO MAIS BAIXO DESCE AO MAIS ALTO HÁ-DE SUBIR


                                                 

Hoje, sábado, véspera de todos os dias!
Porque todos os dias são dias de subir e de transpor. Não só no Domingo da Ascensão, que está mesmo à porta, mas em toda a hora, em todo o mês e em todo o ano: ascender, buscar  mais alto e mais além, se possível tocar as franjas do infinito. Por isso, a tradição fixou em letras de oiro a  “Quinta-Feira da Ascensão” (transitada agora para o Domingo) mas ainda assinalada como feriado em certos países da Europa. Dia de profunda densidade psico-religiosa, pois que se trata de um momento intensamente caro à condição humana,  pleno de vivência e dramatismo: uma despedida – despedida para sempre! O Padre António Vieira dedica-lhe um dos seus discursos, proclamado na igreja de São Julião, em Lisboa. Emociona-se, relevando o qualitativo litúrgico de “Admirabilem Ascensionem tuam” , a que adiciona a retórica nostalgia que a partida do Mestre deixou no (des)ânimo dos  discípulos:  a Ascensão de Jesus  foi como “ desandar o que tinha andado,  desfazer o que tinha feito, desamar o que tinha amado”.
Por mais extasiante e mística que seja aquela hora do adeus, tanto para aqueles que “Ele amara até ao fim,” como para o “Imperador da Língua Portuguesa” e para nós que o lemos, escolhi como ‘aperitivo e sobremesa’ deste fim-de-semana a última cena do relato bíblico: Após a Ascensão e estando os discípulos com os olhos postos sempre nas nuvens, “apareceram dois homens vestidos de branco que lhes disseram: Homens da Galileia! Por que razão continuais  vós aqui parados e  ainda de olhos no alto?... Ide embora para Jerusalém!” … (Act.1,11-12). Então  eles deixaram o Monte das Oliveiras e voltaram para Jerusalém”.
  recomeçou a grande marcha, a incisiva revolução pacífica do Mestre. Sem Ele… Embora lhes fosse dito, na despedida, “Não vos deixarei órfãos… Eu estarei convosco até ao fim dos tempos”, imaginamos o vazio daquela separação e, ainda mais dura, a sensação de impotência e de pavor daqueles homens frágeis, iletrados, perante a magnitude de uma  “missão impossível”! Agora, chegara a sua vez, a sua hora! Não na exclusiva contemplação do seu Mestre e Líder, mas na acção inclusiva e abrangente como Ele bem protagonizara.
É neste binómio – de um outro e firme betão ciclópico – que assenta a Ponte que o Nazareno veio trazer ao mundo. Contemplação e Acção! Muitos equívocos se têm cimentado e deformado, ao longo de séculos na história da Igreja. É assunto visto e revisto – fiado e desfiado -- mas que persiste, como cardume de enguias nas entranhas da instituição, desde os mais pesados baixios até aos mais leves calhaus deste “Mar da Galileia” que é a cristandade. Nem sequer me ocupo em demonstrar, de tão evidente, a tendência armadilhada de transformar a Fé num cardápio de manjares celestiais onde superabundam receitas de “alecrim e manjerona” entre mãos enclavinhadas, mas onde faltam e fenecem as atitudes cristalinas e frontais do Mestre, demonstrativas da coragem e da coerência com o Projecto Renovador do Evangelho.
Cito apenas dois momentos. O primeiro vem na biografia do Bispo Manuel Vieira Pinto -- um grosso volume  onde  o Prof. Pe Anselmo Borges coligiu muitas das homilias do então Bispo de Nampula. Enviado para Moçambique em 1967 (o mesmo ano em que fui eu mandado para a guerra colonial…), caíu-lhe em cima a ‘metralha’ do colonialismo fascista de Lisboa, tendo sido de lá  expulso, pouco antes do “25 de Abril de 74”. Voltou à sua diocese após a Revolução dos Cravos e foram muitos os encontros do Bispo Vieira Pinto com o Presidente Samora Machel. Num desses encontros, sempre reivindicativos em prol da valorização dos moçambicanos,  o Presidente Machel ‘atira-lhe’ com esta provocação:”
“Porque é que tu, que és Bispo, quando vens falar comigo, nunca me falas de Deus e da religião, mas do povo, da defesa dos seus direitos e da sua dignidade?”. Resposta imediata do Bispo: “Porque um deus que precisasse da minha defesa seria um deus que não é Deus. Deus não precisa que O defendam. O Homem sim”.
Tradução esta, a mais fiel, do Dia da Ascenção. A verdadeira. Elevar, defender a Pessoa, coroa da criação!
A confirmar a trajectória do programa ascensional de uma  Fé genuína, termino com o pensamento do Grande Frei Beto, autêntico bandeirante revolucionário, por quem tive a  honra de ser recebido, em 1972:
“É interessante constatar que grandes místicos foram simultaneamente pessoas mergulhadas na efervescência política de sua época. Francisco de Assis questionou o capitalismo nascente. Tomás de Aquino defendeu, em O Regime dos Príncipes, o direito da insurreição contra a tirania. Catarina de Sena, analfabeta, interpelou o Papado. Teresa de Ávila – ‘mulher inquieta, errante, desobediente e contumaz’, como a qualificou D. Felipe Sega, núncio papal em Espanha, 1578 – ela revolucionou a espiritualidade cristã” (A Mosca Azul, 2008).
Homens da Galileia, por que ficais assim embasbacados, ostensivamente, farisaicamente orantes?... Homens da Galileia, Homens de Hoje, senhorios das Igrejas, sejam elas quais forem! Em tempo de pandemia, assusta-me o ardor pró-neurótico que tem invadido os templos, (até entre nós)  relegando o altar para uma espécie de  banca  milagrosa, a baixo-custo. Até Trump, insensato promotor da falência da saúde americana, até ele já manda abrir as igrejas…para acudir ao Covid!
Bem hajam os Homens Bons, ao lado do Papa Francisco que quer as vestes dos pastores cheirando ao bafo do rebanho!
Hoje e Sempre, Dia de subir. Porque descer à terra e à vida, mergulhar para salvar é o melhor e mais directo GPS para chegar às Alturas. Per angusta ad Augusta!

23.Mai20
Martins Júnior    

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