Já
que não nos é permitido deambular por entre os fantasmas invisíveis que, a
qualquer momento e em qualquer esquina, podem picar-nos a pele e a vida, então
sentemo-nos. Façamos um poema. Ou pintemos uma aguarela. Ou viajemos na rota do
sonho.
Como ponto de partida, desde o nosso
sofá, leiamos em rodapé a notícia de alguém que brilhou como estrela polar no
teatro musical, do bailado, da arte. E que arte, a das Supremes. Seu nome: Mary Wilson. Morreu ontem.
Mary Wilson!... Mas este nome não é
este - passe a tautologia. Mary Wilson já lá foi. Em 1916. Homónimas na cédula
de nascimento, heterónimas no percurso existencial, simétricas na
horizontalidade do seu epílogo, ambas são hoje aqui reerguidas e lembradas. Aquela,
pelo timbre da sua voz avassaladora, fundadora das Supremes, ao lado de Diana Ross e Florence Baillard, revolucionou a
musica pop, levou ao apogeu a música e a condição
afro-americanas, ganhou o galardão no Rock
and Roll Hall of Fame, na década de 60. Esta, Madre Mary Wilson, nascida
na Índia, em 1840, após a formação académica nas melhores escolas europeias, a
que juntou o curso de enfermagem,
aportou à Madeira em 1881, como acompanhante de uma idosa doente. Aqui, longe
das ribaltas mundanas e sensibilizada pelo ambiente deficitário da ilha,
revolucionou o assistencialismo tradicional, abriu escolas, hospital e
farmácia, numa época dominada por crises sanitárias e sociais, tendo criado uma
importante organização de mulheres, a Congregação Franciscana de Nossa Senhora das Vitórias, cuja acção tem moldado notoriamente os contornos da sociedade
madeirense.
“Estranhos fados tão diversos”! Tão
desencontradas as pulsões, os movimentos, os meandros correntes e os meneios d’alma.
E, paradoxalmente, tão iguais o cômputo
dos dias e arquitectura dos fins: Ambas terminam a marcha precisamente aos 76
anos de idade e ambas viajam na mesma direcção horizontal!
É neste ecrã que hoje me demoro. Por
mais voltas que dê ao mundo e por mais sensores que possa clickar à descoberta das mais longínquas estações, acabo sempre no mesmo exíguo quarto
da horizontalidade corpórea. Todo o mundo é horizontal.
Perto de nós, Carlos do Carmo é a voz
horizontal. Mais longe, Leonardo da Vinci é a paleta horizontal. Einstein é a relatividade
horizontal. Camões é a epopeia horizontal. “Le Roi-Soleil”, mesmo vestido de
astro-rei, não é mais que o poder horizontal. E Cleópatra, Joana Princesa foram
e as intocáveis divas “Miss Universo” serão um dia voláteis estátuas horizontais.
Seremos todos exemplares jacentes –
seremos estáticos e impotentes
infra-robôs irremediavelmente postos, num minúsculo palco, aos olhares dos transeuntes,
nossos ex-companheiros de viagem. E tudo quanto tu e eu e nós escrevemos ou
cantámos ou chorámos “tudo caberá num estreito baú de dois (ou sete) palmos” –
perdoe-me Eugénio de Castro ter-me apropriado do emocionado soneto que dedicou
ao seu menino, prematuramente falecido.
Para que seja bela, transcendente a
nossa horizontalidade, vivamos na mais decidida e crescente verticalidade. Do embondeiro mais alto da floresta, daí é que se alcançam os
horizontes distantes. E é por isso que “as árvores morrem de pé”!
Neste chão coalhado de monumentos caídos
às ordens de “Sua Crueldade Covid/19”, algo façamos para que os viventes,
candidatos como nós ao mesmo pódio, vejam na nossa inevitável horizontalidade os nobres horizontes de uma vida que valha a
pena viver.
Como
as duas ‘gémeas Mary Wilson, unidas pelos cem anos que as separam. Que elas nos
permitam dizer: I Am Mary – Je suis
Wilson!
09.Fev.21
Martins Júnior
Que extraordinária viagem por num espaço de um século, onde a horizontalidade se fez madura e se permitiu soltar, expandir-se pelo presente e pelos horizontes distantes da incerteza do amanhã, que só as árvores conseguem alcançar e decifra " morrer de pé".
ResponderEliminarObrigado, mestre.