terça-feira, 9 de fevereiro de 2021

NO PLANETA HORIZONTAL, TUDO É HORIZONTAL – NÓS TAMBÉM! HOMENAGEM A DUAS MULHERES

                                                                          


Já que não nos é permitido deambular por entre os fantasmas invisíveis que, a qualquer momento e em qualquer esquina, podem picar-nos a pele e a vida, então sentemo-nos. Façamos um poema. Ou pintemos uma aguarela. Ou viajemos na rota do sonho.

         Como ponto de partida, desde o nosso sofá, leiamos em rodapé a notícia de alguém que brilhou como estrela polar no teatro musical, do bailado, da arte. E que arte, a das Supremes. Seu nome: Mary Wilson. Morreu ontem.

                                                                    


         Mary Wilson!... Mas este nome não é este - passe a tautologia. Mary Wilson já lá foi. Em 1916. Homónimas na cédula de nascimento, heterónimas no percurso existencial, simétricas na horizontalidade do seu epílogo, ambas são hoje aqui reerguidas e lembradas. Aquela, pelo timbre da sua voz avassaladora, fundadora das Supremes, ao lado de Diana Ross e Florence Baillard, revolucionou a musica pop,  levou ao apogeu a música e a condição afro-americanas, ganhou o galardão no Rock and Roll Hall of Fame, na década de 60. Esta, Madre Mary Wilson, nascida na Índia, em 1840, após a formação académica nas melhores escolas europeias, a que juntou o  curso de enfermagem, aportou à Madeira em 1881, como acompanhante de uma idosa doente. Aqui, longe das ribaltas mundanas e sensibilizada pelo ambiente deficitário da ilha, revolucionou o assistencialismo tradicional, abriu escolas, hospital e farmácia, numa época dominada por crises sanitárias e sociais, tendo criado uma importante organização de mulheres, a Congregação  Franciscana de Nossa Senhora das Vitórias, cuja acção tem moldado notoriamente os contornos da sociedade madeirense.

                                                            


         “Estranhos fados tão diversos”! Tão desencontradas as pulsões, os movimentos, os meandros correntes e os meneios d’alma.  E, paradoxalmente, tão iguais o cômputo dos dias e arquitectura dos fins: Ambas terminam a marcha precisamente aos 76 anos de idade e ambas viajam na mesma direcção horizontal!

         É neste ecrã que hoje me demoro. Por mais voltas que dê ao mundo e por mais sensores que possa clickar à descoberta das mais longínquas  estações, acabo sempre no mesmo exíguo quarto da horizontalidade corpórea. Todo o mundo é horizontal.

         Perto de nós, Carlos do Carmo é a voz horizontal. Mais longe, Leonardo da Vinci é a paleta horizontal. Einstein é a relatividade horizontal. Camões é a epopeia horizontal. “Le Roi-Soleil”, mesmo vestido de astro-rei, não é mais que o poder horizontal. E Cleópatra, Joana Princesa foram e as intocáveis divas “Miss Universo” serão um dia voláteis estátuas horizontais.  

         Seremos todos exemplares jacentes – seremos  estáticos e impotentes infra-robôs irremediavelmente postos, num minúsculo palco, aos olhares dos transeuntes, nossos ex-companheiros de viagem. E tudo quanto tu e eu e nós escrevemos ou cantámos ou chorámos “tudo caberá num estreito baú de dois (ou sete) palmos” – perdoe-me Eugénio de Castro ter-me apropriado do emocionado soneto que dedicou ao seu menino, prematuramente falecido.

         Para que seja bela, transcendente a nossa horizontalidade, vivamos na mais decidida e crescente verticalidade. Do embondeiro mais alto da floresta, daí é que se alcançam os horizontes distantes. E é por isso que “as árvores morrem de pé”!

         Neste chão coalhado de monumentos caídos às ordens de “Sua Crueldade Covid/19”, algo façamos para que os viventes, candidatos como nós ao mesmo pódio, vejam na nossa inevitável horizontalidade  os nobres horizontes de uma vida que valha a pena viver.

Como as duas ‘gémeas Mary Wilson, unidas pelos cem anos que as separam. Que elas nos permitam dizer: I Am Mary – Je suis Wilson!

09.Fev.21

Martins Júnior

        

1 comentário:

  1. Que extraordinária viagem por num espaço de um século, onde a horizontalidade se fez madura e se permitiu soltar, expandir-se pelo presente e pelos horizontes distantes da incerteza do amanhã, que só as árvores conseguem alcançar e decifra " morrer de pé".
    Obrigado, mestre.

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