Serena,
leve, quase imperceptível, cheirando à flor do crisântemo, esta chuvinha miúda bate
à janela do quarto e da memória. Traz-nos o arco-íris de “gente que a gente
conhece” e nunca se esquece. Alguns foram os que partiram para sempre, mas
voltam na filigrana líquida desta chuva de Agosto.
Hoje, peço licença ao cartório do
além-túmulo para transladar nesta página a memória de um Homem que, em vida,
brilhou pela sua ausência: ausência de palcos, alergia à espectacularidade,
aversão aos fogos fátuos do folclore a que chamam fama e com a qual “o povo
néscio se engana”. Porquê?... Porque no mais dentro de si mesmo, só havia
carácter, persistência, trabalho, acção. E, tudo somado, dava um nome e um
vértice: Paz e Solução!
Esta minha homenagem comporta um misto de
encantamento, por um lado e, por outro, de sombrio desencanto, que lhe aumenta
o valor. Enfim, um claro-escuro, de que é feita a vida. Pretendo, apenas,
relevar aqui o sinal mais, o traço luminoso da narrativa.
Corria o ano de 2004. No adro da
Ribeira Seca, seis vistosos projectores iluminavam o templo e todo o logradouro
público em redor. Foram os serviços da Empresa de Electricidade da Madeira que
os colocaram, em substituição das modestas lâmpadas que, anos antes, foram oferecidas como ‘prémio’
pelo esforço denodado da população que deu a mão-de-obra para a construção da
torre do primeiro transformador ali construído. Entretanto, aconteceu o imprevisto que deu
lugar ao pânico e à revolta. Sem que ninguém desse por isso – era a hora do
almoço – trabalhadores da mesma EEM vertiginosamente subiram aos postes e arrancaram,
levando consigo, os projectores. Chegada a noite, a população amotinou-se, a
indignação subiu de tom, marcou-se uma vigília de protesto para a noite
seguinte. Não foi tarefa dócil conter a multidão que se apinhou no adro e
arredores.
Amanhecendo o dia, dirigi-me ao presidente da EEM, a quem dei
conta do ambiente tenso, vivido pelo povo. Pedi explicações. Vi claramente a “amarração”
(uso aqui a bem apropriada expressão popular) e a quase angústia do presidente
(“Eu não tenho nenhuma culpa disto”). Foram longas as conversações, em busca de
uma solução pacífica. Estou a vê-lo, a cabeça apertada entre as mãos, perplexo,
preocupado, como eu, em acalmar a situação. Até que, da boca do “Homem da luz”
surgiu uma luz ao fundo do túnel. E aqui ficou-me para sempre gravado o
talento, mais que diplomático, autêntica intuição de mediador entre dois polos
em duro litígio: “Por favor, compre-me os projectores, vendo-lhos por metade do
preço e os nossos homens vão lá colocar de novo”. Apressei-me em trazer à
população a proposta do presidente que foi aceite pela maioria, embora com
algumas vozes discordantes a exigirem a reposição pura e simples, sem mais
encargos.
Na cedência mútua de interesses
conflituantes, pacificou-se a população. Descobriu-se a Paz. O “Homem da luz”
transfigurou-se em “Obreiro da Paz”. Diante de casos como este, lembro-me de
José Régio naquele tão mimoso e tocante poema “Colegial”: “Isto de ser grande não é como se nos pinta”.
Nunca
mais tivemos oportunidade de falar. Quando a comunicação social noticiou a sua morte (nos ainda jovens 68
anos de idade) curvei-me sentidamente diante da sua memória e da sua humildade
criadora de soluções, predicados tão raros em quem exerce o poder. À chuva
miudinha, pranto de Agosto, que me traz estas reconfortantes reminiscências,
peço-lhe que lhe leve o preito sincero da minha homenagem.
Post
Scriptum: para não empanar o brilho deste momento evocativo, ainda não
satisfiz a dúvida latente nalguns leitores, ou seja: Por que razão foram
retirados, tão bruscamente e sem aviso prévio, os projectores do adro da
Ribeira Seca? Respondo muito sucintamente: Porque, no dia anterior, tinha
havido Eleições Regionais na Madeira – e nas assembleias de voto da Ribeira
Seca saiu, como sempre, perdedor o habitual ganhadores da Região… “Malhas que o Império tece”!...
Não percebi esta dos projetores! Foram retirados e depois pagando metade do preço já poderiam colocar?? Bem, não estou dentro do assunto e como tal não percebo!!
ResponderEliminarRecordo-me desta trabalhada e, julgo, ter sido um procedimento ético e financeiro encontrado pelo Presidente da EEM para justificar ao homem "para Machico nem mais um tostão..." a recolocação dos projetores nos postos em torno da catedral da Senhora do Amparo. São memórias de uma identidade de resistência de gentes e de lugares do nosso tempo, as quais, se tornam extinguíveis caso falte a ousadia e a coragem de as divulgar e registar nos anais imperdíveis da história.
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