quinta-feira, 5 de agosto de 2021

CHOVE EM AGOSTO… HOMENAGEM PÓSTUMA A UM HOMEM DA LUZ E OBREIRO DA PAZ

                                                                   


 

    Serena, leve, quase imperceptível, cheirando à flor do crisântemo, esta chuvinha miúda bate à janela do quarto e da memória. Traz-nos o arco-íris de “gente que a gente conhece” e nunca se esquece. Alguns foram os que partiram para sempre, mas voltam na filigrana líquida desta chuva de Agosto.

      Hoje, peço licença ao cartório do além-túmulo para transladar nesta página a memória de um Homem que, em vida, brilhou pela sua ausência: ausência de palcos, alergia à espectacularidade, aversão aos fogos fátuos do folclore a que chamam fama e com a qual “o povo néscio se engana”. Porquê?... Porque no mais dentro de si mesmo, só havia carácter, persistência, trabalho, acção. E, tudo somado, dava um nome e um vértice: Paz e Solução!

         Esta minha homenagem comporta um misto de encantamento, por um lado e, por outro, de sombrio desencanto, que lhe aumenta o valor. Enfim, um claro-escuro, de que é feita a vida. Pretendo, apenas, relevar aqui o sinal mais, o traço luminoso da narrativa.

         Corria o ano de 2004. No adro da Ribeira Seca, seis vistosos projectores iluminavam o templo e todo o logradouro público em redor. Foram os serviços da Empresa de Electricidade da Madeira que os colocaram, em substituição das modestas lâmpadas  que, anos antes, foram oferecidas como ‘prémio’ pelo esforço denodado da população que deu a mão-de-obra para a construção da torre do primeiro transformador ali construído.  Entretanto, aconteceu o imprevisto que deu lugar ao pânico e à revolta. Sem que ninguém desse por isso – era a hora do almoço – trabalhadores da mesma EEM vertiginosamente subiram aos postes e arrancaram, levando consigo, os projectores. Chegada a noite, a população amotinou-se, a indignação subiu de tom, marcou-se uma vigília de protesto para a noite seguinte. Não foi tarefa dócil conter a multidão que se apinhou no adro e arredores.

         Amanhecendo o dia,  dirigi-me ao presidente da EEM, a quem dei conta do ambiente tenso, vivido pelo povo. Pedi explicações. Vi claramente a “amarração” (uso aqui a bem apropriada expressão popular) e a quase angústia do presidente (“Eu não tenho nenhuma culpa disto”). Foram longas as conversações, em busca de uma solução pacífica. Estou a vê-lo, a cabeça apertada entre as mãos, perplexo, preocupado, como eu, em acalmar a situação. Até que, da boca do “Homem da luz” surgiu uma luz ao fundo do túnel. E aqui ficou-me para sempre gravado o talento, mais que diplomático, autêntica intuição de mediador entre dois polos em duro litígio: “Por favor, compre-me os projectores, vendo-lhos por metade do preço e os nossos homens vão lá colocar de novo”. Apressei-me em trazer à população a proposta do presidente que foi aceite pela maioria, embora com algumas vozes discordantes a exigirem a reposição pura e simples, sem mais encargos.

         Na cedência mútua de interesses conflituantes, pacificou-se a população. Descobriu-se a Paz. O “Homem da luz” transfigurou-se em “Obreiro da Paz”. Diante de casos como este, lembro-me de José Régio naquele tão mimoso e tocante poema “Colegial”: “Isto de ser grande não é como se nos pinta”.

Nunca mais tivemos oportunidade de falar. Quando a comunicação social  noticiou a sua morte (nos ainda jovens 68 anos de idade) curvei-me sentidamente diante da sua memória e da sua humildade criadora de soluções, predicados tão raros em quem exerce o poder. À chuva miudinha, pranto de Agosto, que me traz estas reconfortantes reminiscências, peço-lhe que lhe leve o preito sincero da minha homenagem.

           Post Scriptum: para não empanar o brilho deste momento evocativo, ainda não satisfiz a dúvida latente nalguns leitores, ou seja: Por que razão foram retirados, tão bruscamente e sem aviso prévio, os projectores do adro da Ribeira Seca? Respondo muito sucintamente: Porque, no dia anterior, tinha havido Eleições Regionais na Madeira – e nas assembleias de voto da Ribeira Seca saiu, como sempre, perdedor o habitual ganhadores da Região… “Malhas que o Império tece”!...

 

2 comentários:

  1. Não percebi esta dos projetores! Foram retirados e depois pagando metade do preço já poderiam colocar?? Bem, não estou dentro do assunto e como tal não percebo!!

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  2. Recordo-me desta trabalhada e, julgo, ter sido um procedimento ético e financeiro encontrado pelo Presidente da EEM para justificar ao homem "para Machico nem mais um tostão..." a recolocação dos projetores nos postos em torno da catedral da Senhora do Amparo. São memórias de uma identidade de resistência de gentes e de lugares do nosso tempo, as quais, se tornam extinguíveis caso falte a ousadia e a coragem de as divulgar e registar nos anais imperdíveis da história.

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