Esta
é a crónica que nunca desejara escrever. Porque este é o crime que nunca
imaginara “ver” sob os meus olhos nem muito menos no cenário da minha memória.
         À hora em que escrevo, sinto os passos
daquela multidão que corria para as suas casas batendo no peito. Oiço o pulsar
e a voz do oficial centurião romano, comandante da tropa que levou a cabo a
operação “assassinato” do Nazareno: “Agora reconheço que esse homem era um
justo” (Lc. 23, 47)-
eco magoado, mas tardio,  do plenipotenciário
Pôncio Pilatos que, antes de  lavrar a
sentença capital contra J:Cristo, exclamou perante os acusadores em satânico delírio:
“Não acho matéria de crime neste homem” (Jo.
18,38).
         E, no entanto, entregou-O  à sevícia dos carrascos. Então, como? Se o
juiz Pilatos não encontrou matéria de acusação,  por que  O  mandou para fatal cadafalso?
É
com este nó atravessado na garganta que me custa entrar no cortejo da chamada “Via-Sacra”.
Entro, sim, mas sob protesto! Contra a tibieza de Pilatos que se acobardou à
pressão do poder religioso. Protesto contra os Sumos Sacerdotes do Templo,
instalados no  topo da hierarquia da
religião judaica. Estes, os autores 
principais, únicos, deste horrendo atentado: sob as vestes bafientas mas
tenebrosas da “Lei” esconderam-se na sombra e mandaram para a arena das ruas de
Jerusalém  os soldados, os marginais, os
criminosos das cadeias que bradavam liberdade para  Barrabás. Protesto contra a subversão das
normas processuais então em vigor, atirando J:Cristo de tribunal em tribunal, o
religioso (Sinédrio) e o judiciário (Pretório). Foi a antecipação da Inquisição,
sempre o poder religioso e o poder político maquiavelicamente  conluiados, não se sabendo onde acaba um e
começa o outro, para queimarem na fogueira pública da mais vil hipocrisia aqueles
que rompem a treva e levantam o facho purificador da Verdade e da
Transparência.
         É um turbilhão de íntimos sobressaltos
que tomam conta de mim nesta fatídica sexta-feira do crime histórico. Protesto
contra todos esses poderes hierárquicos, a dois níveis, que fazem da Via-Sacra
uma “diversão” para os olhos e um anestesiante da consciência crítica,  pomposamente  arregimentadas (nada de mais disforme da
verdade dos factos!) percorrendo cidades e aldeias, fazendo crer que o nosso
Cristo se deixou matar, como se de um suicida se tratasse, “pelos pecados do
Povo”, quando é o Povo a vítima  constantemente sangrada e apetecida dos
poderosos. Protesto!  Jesus foi assassinado
pelos crimes dos  que  pervertem o Povo, distorcendo a realidade: os
detentores do capital, da ditadura, do domínio, seja ele profano ou pseudo e
atrevido domínio “sagrado”.
Faço
minhas as palavras de Anselm Grun: “Para Luther King, a Paixão de Jesus
indicava um caminho para os cristãos manifestantes  se revoltarem pacificamente contra a injusta  segregação racial e para destituir o poder
estatal, frequentemente bruto e desumano”.
Perdoem-me
a impaciência, mas não consigo prosseguir.
Na
nossa Via-Sacra, acompanhou-nos uma cruz. Sem crucificado. Não se percebe a
atracção dos crentes por um Cristo, quase nu, derrotado e vaiado, como se os denodados
defensores da Verdade tivessem sempre como prémio a derrota e a ignomínia.
Acabemos com o prazer mórbido de ver condenados os inocentes. O nosso J:Cristo
quer quem O tire de lá, quem faça ressuscitar as causas pelas quais teve de
suportar toda a vida os ataques dos barões da religião. 
Naquele
cruzeiro vazio estamos nós, estão  todos
os que lutam contra as quotidianas condenações de tantos Cristos vivos.
 Para apaziguar 
a minha mais profunda indignação, fui visitar amigos meus, presos a uma
outra cruz, uma cama do hospital. Aí, recordei-me do “Príncipe da Língua
Portuguesa”, o Padre António Vieira, em São Luis do Maranhão, há mais de 400
anos:
  “As
imagens de Jesus Crucificado que estão nas igrejas são imagens falsas, porque
não padecem nem sofrem. Imagens verdadeiras de Jesus são os pobres, os doentes,
esses sim é que padecem”.
Que
o protesto se transforme em força maior e manhã de Páscoa!
25.Mar.16
Martins Júnior
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