Hoje sei que  vou em contramão. Vou para a ilha. Para uma
outra ilha, indiferente à paranóia ululante dos’ circos  quadrangulares’  onde é rainha uma esfera de couro. Quem for
comigo tomará conta de um processo milenar que continua na barra do tempo.
Ele
era um operário trintão, tisnado do sal e do sol  lá das bandas orientais. De palavra clara e
olhares contraditórios, ora ternos como os de uma criança,  ora faiscantes como brasa, , arrastava as
multidões. Chamavam-lhe até “O Sedutor”. Com ele, os mares abriam-se à passagem
e os penhascos do medo sucumbiam de espanto. E tudo era caminho chão, tudo
manhã de aventura nos corações insofridos. O povo adorava o seu líder operário,
que dava voz e força a quem as não tinha.
Mas
não era esse o seu tempo. A ditadura dos homens devorava ossos e cabeças,
sobretudo dos que ousassem afrontar a lei, o império, o templo. E foi
decretado: “Quem disser bem desse homem é preso e posto fora do povoado” .
Ora,
um dia o ‘sedutor das multidões’ encontra um cego de nascença e abre-lhe os
olhos. E começou a ver. Mas antes que a notícia corresse, era preciso afogá-la
na fonte,  na própria boca do feliz
contemplado, agora vidente. É arrastado clandestinamente ao tribunal do poder
absoluto e apertado com uma lista de quesitos, tudo para convencê-lo a dizer
que o suposto  benfeitor era um falsário,
um impostor, um criminoso público.. E, “termos em que” não podia ser o autor
daquela cura mágica. E se persistisse nesse  seu ‘ embuste’ seria expulso do povoado.
Tudo  em vão. O rapaz só contava os
factos. E daí não saía.
Já
que as ameaças não  resultaram, os pais
são intimados ao tribunal para jurar que  aquele não era o seu filho cego e que, ao
menos, pusessem em causa o acontecido. “Não sabemos como aconteceu, perguntai
ao próprio que ele já tem idade de responder”. Era asfixiante, inelutável,
tenebroso,  o medo de reconhecer a
verdade dos factos e atribuir o feito ao seu legítimo autor. Porque pairava no
ar a inexorável  guilhotina  do momento: “Será réu quem disser bem desse
revolucionário impostor”.
Novo
interrogatório, pidesco e torturante, ao cego, agora vidente, sujeito ao
massacre de lavagem de cérebro para negar a evidência. “Aos costumes, disse
nada” e manteve a palavra dada.  À pergunta
do réu – será que quereis ser adeptos do homem que me curou? – saltaram os
magistrados  de toga,  vociferaram os ministros do templo e caíram como
lava os anátemas, as pragas, todas as maldições em cima do pobre cego. Até que
o expulsaram do local, enfim,  proscrito
e corrido  do próprio templo. 
O
Templo era, então, mais forte que o Trono. Saiu, pois,  o pobre mendigo condenado no tribunal de  Deus e no Juízo dos homens. Mas a sentença
capital tinha outro destinatário, era outro o réu procurado, “Vivo ou Morto”.
Acabaram por achá-lo, denunciado por um pérfido  delator, suposto amigo seu . Chutado da terra,
assassinado a céu aberto, como um bicho repelente. Ele, o revolucionário
pacífico, solidário com os conterrâneos e vizinhos, o construtor de pontes, o
Sedutor das multidões!
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 Foi isto
que os Autos bíblicos apresentaram ontem oficialmente  a todo o mundo, em João.9, 1-41. Muitas foram
as interpretações, umas místicas, outras metafóricas, outras poéticas e
sociais. 
Mas a rudeza dos factos
não suporta mistificações. É nua e crua. O poder totalitário e o furacão do
obscurantismo, quando revestidos da aura religiosa, não olham a meios para
chegar aos fins, sempre de um requinte maquiavélico: calar ou manipular a
notícia, arregimentar a Censura, distorcer a realidade, formatar e deformar
quem se lhes opõe, vale tudo – marketing, palavras de ordem, ameaças, suborno,
corrupção – vale tudo até à exaustão. E a exaustão  (antes eram as arenas selváticas, a fogueira
da Inquisição, os fornos crematórios) ) hoje é a liquidação fria, o ostracismo
social, o assassinato e depois…”quem é o senhor que se  segue?”…talvez um sindicalista, uma mulher
activista, um professor, um profeta dos tempos presentes e futuros… e, quem
sabe, um Francisco Papa!  
Porque
o “Processo de Jesus”  não tem fim à
vista, enquanto o mundo não acordar. Enquanto nós, também…
27.Mar.17
Martins Júnior

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