Grande
poeta é o povo, já diz o velho rifão. E eu acrescento: Grande beato e Grande
pândego é o povo!
Diverte-nos até à náusea o exercício de subir até ao pico alto destes dias monótonos, alongar a vista e
monitorizar os impulsos deste formigueiro ambulante em que todos nós também estamos
metidos como voluntários-à-força.
Com ou sem pandemia, o povo reedita a
trilogia clássica da “velha senhora”, os três famosos “FFF” – Futebol, Fátima e
Fado – tão colados aos genes do ‘puro sangue lusitano’. Com o macroclima
pandémico, porém, ganharam novas estirpes e outras variantes, transmutadas que
estão para novas formas, revistas e actualizadas: os “SSS”.
É da ironia dos tempos modernos que
eles nos falam. E de que me ocupo também neste entalho. Começando pelos “Santos”,
está bem patente que eles mudaram de nome, de farda e de casa. Hoje, os
carismáticos, os heróis, os mártires (alguns até já lhes aconteceu caírem
mortos no próprio local de trabalho) numa palavra, os novos ‘santos’ já não
estão nos altares, mudos, extáticos, amarrados, à espera de jaculatórias e óbolos
pios. Não, hoje eles correm, saltam como saltimbancos, agridem, vociferam e, em
vez de orações, rebentam-lhes em cima as paranoias dos crentes, as imprecações
e
as ameaças mais absurdas a-céu-aberto. Em vez de túnicas, enfiam calções nas
pernas nuas suportadas por chuteiras e pitões. A casa deles é uma outra, de
linhas majestosas, aerodinâmicas. As novas sés catedrais e as novas basílicas
estão nos estádios de futebol. “Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades”…
Os velhos Santos também têm assento na “faena” agitada do grande teatro do mundo. Mas ficam
nos bastidores. Quando lhes sai o nome da cartola do “compère”, eles não entram
nem falam. Quem entra às cambalhotas e fala e canta e ri até à exaustão é a ‘rainha
santa’, a sardinha, é o fogareiro, é o garrafão e… Viv’ó Santantónio, viv’ó San João e venha o San Pedro para a reinação!... O cómico
de toda esta rodada pegada é que nenhum deles aparece e deles ninguém fala.
Quem exalta a eloquência de António de Lisboa, quem releva a verticalidade austera
do Baptista ou quem se comove com a auto-crítica e o humanismo do Pescador da
Galileia?!
No ADN da nossa civilização cristã e
ocidental, a beatice fica por sacralizar se não chegar a pândega a acolitá-la.
E logo salta o código da boa vizinhança: a beatice beatifica a pândega.
Sem pretensões de moralizar os
costumes, está visto que o povo precisa de episódios pretextuais para
divertir-se. E lá vêm os Santos. Ai que
este ano não houve Santo António, ai que não há São João e o São Pedro – gemem
e protestam os arraialeiros. Pois bem, ouso comentar assim essas lamúrias: Tal
como os foliões estão-se borrifando para a identidade factual dos Santos, assim
também os Santos estão-se borrifando para os arraiais que abusivamente se
apropriam dos seus nomes.
Nesta linha de pensamento, acho melhor
que se autonomizem essas festas e se tratem pelo seu verdeiro nome: Festa dos
bairros de Lisboa, Festa da sardinha assada ou dos martelinhos, Festa das
gentes do mar ou afins. Ganharia mais músculo e autenticidade cada festival em
seu lugar
Em nota de rodapé, permitam-me associar
a estas efemérides a evocação de São Tiago Menor, Patrono do Funchal. Mais
genuínas ficariam as comemorações
seculares, ora em curso, se não fossem consignadas apenas ao hipotético ‘milagre’
contra a epidemia que assolou a capital madeirense no século XVI. Assinalando com elevada consideração os textos
já publicados, entendo que a personalidade de São Tiago Menor e a sua doutrina
social transcendem incomensuravelmente os formulários estereotipados das ditas
comemorações.
23.Jun.21
Martins Júnior
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