Não tarda muito e acordaremos todos em cima da campa rasa de Luís Vaz de Camões. Dão-lhe, ao 10 de Junho, o épico e apoteótico nome de “Dia de Portugal”.
Quando os grandes acontecimentos passam
no terreiro do nosso casebre e lhes seguimos as pegadas, eles perdem o brilho
distante, parece que se desnudam e ficamos a descobrir-lhes as costuras e
cicatrizes que de longe nos escapavam à vista desarmada. É o que desvendam,
ontem, hoje e amanhã, os ilhéus herdeiros de Perestrelo, Zargo e Tristão Vaz.
Basta um simples abrir e fechar de olhos para nos darmos conta do mito.
Desde logo, o tremendo peso da
Soberania materna no colo de uma frágil e esticada língua de terra-filha,
perdida no oceano: os motores de guerra, as fardas luzidias nas medalhas acolchetadas
ao peito, as bandeiras a secar ao sol da avenida, as botas cardadas
estremecendo o asfalto, as trombetas “de Jericó” em despique metálico com o troar dos canhões,
enfim, uma tonelagem capaz de abalroar a minúscula canoa do Atlântico em volta.
Mas a Ilha aguenta, porque mais importante é o palanque – o ruído que
rói a rolha da rádio, o olho mágico que se multiplica pelos campos e pelas
cidades, pela metrópole e pelos continentes. É o palanque extático e é o palanque
ambulante. Num, fisga a palavra patriótica, a de Portugal e, embrulhada pelo
meio, a lamúria ‘matriótica’, a da Ilha. Oh, que emproado desfile de
super-oradores, Cíceros e Demóstenes reincarnados! Oh que ribeiro de prantos
infantis, hexa-seculares, enchendo as marés insulares! O outro palanque – o ambulante
– comove e diverte ao mesmo tempo, tal o ridículo dos maldizentes de cá,
agarrados por um cordão invisível, às ilhargas do Presidente Magno , dos
Ministros médios e até das sotainas hierárquicas, tudo para que o Zé-Povo da
baixa periferia se embriague com esta premeditada
‘poncha’ verde-rubra, azul-amarela. Se os ecrãs deitassem cheiro, tresandavam
ao olfacto do espectador as cenas de raspões e encontrões para ver quem se
aperalta primeiro ao pé do Chefe…
O máxi-Portugal de Lisboa enche o
mini-Portugal do Funchal, inclusive vieram empolgar a Ilha as bandeiras de
todos os países do Corpo Diplomático, representados pelo Embaixador do
Vaticano, vestido ou revestido de Núncio Apostólico.
Reconhecendo, embora, a presente
comemoração como distinta e honrosa investidura nacional do nosso arquipélago
(adjacente, assim lhe chamavam antigamente), assistir-se-á a um redobrado duelo
de ‘violência doméstica’ entre a Nação-Mãe e a Ilha-Filha. Entrarão em fase
mais aguda de pugilato político República e Autonomia. Nada de estranho desde a
génese deste país, até porque, para haver Portugal-Nação, tiveram que terçar
armas o filho Afonso e a mãe Teresa. O que de humilhante para nós vai ficar é o
contraste entre a hipocrisia do ritual ora vigente e a ‘artilharia’ caseira após o ‘regresso da República’ a Lisboa. É o costume...
A este propósito, transcrevo a sensata
ironia de Eça dirigida a Pinheiro Chagas sobre os falsos patriotas, a quem
denominava de ‘patriotaças, patrioteiros, patriotadores, patriotarrecas’. Venha
de novo Eça e substitua o prefixo pátrio
por autonomisto, que quanto ao sufixo
ficaremos muito bem elucidados.
No Dia de Portugal, seja-me permitido
erguer bem alto o glorioso padrão dos autênticos patriotas e lídimos
autonomistas, os homens e as mulheres, jovens e idosos, que durante a vida aqui
deram o melhor, os que no silêncio do seu lugar construíram a Nação e consolidaram
a Ilha vulcânica, para o presente e para o futuro.
Assim,
Luís Vaz de Camões, em seu leito de morte, pobre e abandonado, em 10 de Junho
de 1580 . Mas foi ele que perpetuou Portugal nas oitavas d’OS LUSÍADAS!
09.Jun.21
Martins
Júnior
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