quarta-feira, 9 de junho de 2021

TÃO PEQUENA PARA UM TÃO GRANDE IMPÉRIO: CENAS SOLTAS DE VIOLÊNCIA DOMÉSTICA ENTRE MÃE E FILHA

                                                                                                                                              




  Não tarda muito e acordaremos todos em cima da campa rasa de Luís Vaz de Camões. Dão-lhe, ao 10 de Junho,  o épico e apoteótico  nome de “Dia de Portugal”.

         Quando os grandes acontecimentos passam no terreiro do nosso casebre e lhes seguimos as pegadas, eles perdem o brilho distante, parece que se desnudam e ficamos a descobrir-lhes as costuras e cicatrizes que de longe nos escapavam à vista desarmada. É o que desvendam, ontem, hoje e amanhã, os ilhéus herdeiros de Perestrelo, Zargo e Tristão Vaz. Basta um simples abrir e fechar de olhos para nos darmos conta do mito.

         Desde logo, o tremendo peso da Soberania materna no colo de uma frágil e esticada língua de terra-filha, perdida no oceano: os motores de guerra, as fardas luzidias nas medalhas acolchetadas ao peito, as bandeiras a secar ao sol da avenida, as botas cardadas estremecendo o asfalto, as trombetas “de Jericó”  em despique metálico com o troar dos canhões, enfim, uma tonelagem capaz de abalroar a minúscula canoa do Atlântico em volta.

         Mas a Ilha aguenta, porque  mais importante é o palanque – o ruído que rói a rolha da rádio, o olho mágico que se multiplica pelos campos e pelas cidades, pela metrópole e pelos continentes. É o palanque extático e é o palanque ambulante. Num, fisga a palavra patriótica, a de Portugal e, embrulhada pelo meio, a lamúria ‘matriótica’, a da Ilha. Oh, que emproado desfile de super-oradores, Cíceros e Demóstenes reincarnados! Oh que ribeiro de prantos infantis, hexa-seculares, enchendo as marés insulares! O outro palanque – o ambulante – comove e diverte ao mesmo tempo, tal o ridículo dos maldizentes de cá, agarrados por um cordão invisível, às ilhargas do Presidente Magno , dos Ministros médios e até das sotainas hierárquicas, tudo para que o Zé-Povo da baixa periferia  se embriague com esta premeditada ‘poncha’ verde-rubra, azul-amarela. Se os ecrãs deitassem cheiro, tresandavam ao olfacto do espectador as cenas de raspões e encontrões para ver quem se aperalta primeiro ao pé do Chefe…

         O máxi-Portugal de Lisboa enche o mini-Portugal do Funchal, inclusive vieram empolgar a Ilha as bandeiras de todos os países do Corpo Diplomático, representados pelo Embaixador do Vaticano, vestido ou revestido de Núncio Apostólico.

         Reconhecendo, embora, a presente comemoração como distinta e honrosa investidura nacional do nosso arquipélago (adjacente, assim lhe chamavam antigamente), assistir-se-á a um redobrado duelo de ‘violência doméstica’ entre a Nação-Mãe e a Ilha-Filha. Entrarão em fase mais aguda de pugilato político República e Autonomia. Nada de estranho desde a génese deste país, até porque, para haver Portugal-Nação, tiveram que terçar armas o filho Afonso e a mãe Teresa. O que de humilhante para nós vai ficar é o contraste entre a hipocrisia do ritual ora vigente e a ‘artilharia’ caseira  após o ‘regresso da República’ a Lisboa. É o costume...

         A este propósito, transcrevo a sensata ironia de Eça dirigida a Pinheiro Chagas sobre os falsos patriotas, a quem denominava de ‘patriotaças, patrioteiros, patriotadores, patriotarrecas’. Venha de novo Eça e substitua o prefixo pátrio por autonomisto, que quanto ao sufixo ficaremos muito bem elucidados.

         No Dia de Portugal, seja-me permitido erguer bem alto o glorioso padrão dos autênticos patriotas e lídimos autonomistas, os homens e as mulheres, jovens e idosos, que durante a vida aqui deram o melhor, os que no silêncio do seu lugar construíram a Nação e consolidaram a Ilha vulcânica, para o presente e para o futuro.

          Assim, Luís Vaz de Camões, em seu leito de morte, pobre e abandonado, em 10 de Junho de 1580 . Mas foi ele que perpetuou Portugal nas oitavas d’OS LUSÍADAS!

 

         09.Jun.21

         Martins Júnior

          

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