Ai, que hoje arrisco-me a perder amigos
e, pior que isso, ainda apanho em cima com o anátema de todos os santos e de
todos os demónios. Mas, mesmo assim, não resisto a entrar no contexto da
estação conflituosa do momento em que se ouve, de parte a parte, este espavorido
desabafo entre os muitos litigantes na arena eleitoral: “Você deturpou as
minhas palavras, não foi isso que eu quis dizer”.
Deturpar as palavras, os factos, as
reminiscências. Terrível e temível compressor é o Tempo! Tão depressa escreve,
apaga, reescreve e torna a desenhar com tal à-vontade que, na linguagem dos símbolos, toma-se a
parte pelo todo, o continente pelo conteúdo, a forma pelo fundo, enfim, o Tempo
vira tudo do avesso. Revejo-me nesta constatação do quotidiano quando percorro os
trilhos da comunicação social, das redes e até da conversação em circuito
privado. Mas hoje optei por situar-me no 17
de Janeiro, Dia do Senhor Santo Antão, cuja festa é marcada por um ritual
sacro-profano, mais conhecido por “Bênção dos Animais”.
É
de uma beleza ternurenta ver o carinho com que os partilhantes trazem ao colo e
aos ombros o cordeirinho manso, o gato matreiro, o cão enfatuado,, o provocador
papagaio, o galo dominando as restantes aves multicolores e até o burrinho de carga
que hoje sobe ao pódio pela insustentável leveza da água benta. Tudo tão
pitoresco e sugestivo que bem poderia o PAN (perdoe-me Inês Sousa Real)
entronizar Santo Antão como o Padroeiro do seu partido, o Santo Protector dos
Animais e da Natureza.
Mas o que nos diz a tradição – e as pessoas não sabem – é a lógica da representação animal que o nosso Santo traz aos pés. Conta-se em poucas linhas. Santo Antão, egípcio, (251-356) sentiu a atração mística pelo deserto, abandonando as vaidades mundanas, como a forma mais perfeita de santidade, vocação esta comum a muitos outros eremitas da época. E – também comum a todos os monges eremitas – a sua vida isolada do mundo não lhes garantia imunidade às tentações do demónio que não lhes permitia a total entrega à penitência e à oração. Então eram frequentes as arremetidas de Satanás que lhes aparecia em forma de animais disformes, aos rugidos e roucos de toda a espécie. Cenas destas fazem parte da tradição imagética disseminada em templos e colecções particulares.
Ao mesmo tempo que nos deliciamos com o
mini-jardim zoológico em redor do adro da igreja, não apagamos a simbologia
original que a tradição se encarregou de sublimar, transmutando por completo a
semântica dos animais postados aos pés do Santo Antão. Já não são os seus
demónios tentadores. São agora os seus mais devotos protegidos. Trata-se de uma
evolução positiva, talvez uma catarse interpretativa, não deixando de
assumir-se, em termos substantivos, de uma total ‘deturpação’ do significado
inicial, o qual mil e setecentos anos de
devoção transfiguraram num quadro bucólico, quase romântico e sagrado.
Espero
que me absolvam – os santos e os demónios – desta breve incursão inspirada nos
usos e costumes de certas localidades, ressalvando a versatilidade da crença
popular que ajeita a história ancestral à idiossincrasia constante das
diferentes fases culturais e devocionais do seu habitat natural.
Sem
pretender extravasar deste simples episódio, não deixo de reconhecer o campo
aberto de debate e apreciação de fenómenos estranhos e gratuitos que o
hagiológio eclesiástico perpetuou, sem que da parte dos crentes haja a mínima
preocupação de dilucidá-los e interpretá-los, à luz de uma rigorosa
hermenêutica. É um assunto da maior relevância cultual e cultural.
17.Jan.22
Martins Júnior
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