segunda-feira, 25 de outubro de 2021

OS ESTRANHOS CHEIROS DAS URNAS… AI, SE AS URNAS FALASSEM!

                                                                             


Estalaram na semana passada os últimos foguetes-fogos fátuos dos vencedores e, nos antípodas, as lamúrias-desforras dos vencidos neste pequeno rectângulo luso, esteja ele na Madeira, Açores ou Continente. E porque “nada do que é humano me é estranho”  e, por força maior, porque esse “humano” mora na casa onde vivo, tornando-me parte integrante do seu “habitat” – eis  o móbil que não me deixa ficar indiferente perante mais um de entre os episódios cíclicos a que se dá o pomposo nome de Eleições.

         Mais Um! – sublinho. Porque a lava ululante que sai da boca de certos inflamados profissionais no climax eleitoral – este é um momento histórico… estas são as eleições decisivas… agora ou nunca… está em causa o futuro dos nossos filhos, netos, bisnetos – tudo isso não passa de ridículas fábulas nas bancas de feirantes: fome de fama, sede de cobiça, “nomes com que se o povo néscio engana”, diria o nosso épico. Campanhas eleitorais são luas e marés que vão e vêm, umas são outras virão.

         Agora que a poeira de lume patriotarreca assentou na cinza morna dos dias, agora é que se faz o balanço, o deve e o haver do ‘negócio´ eleitoral. Proponho para isso uma prova de cheiro, idêntica à do paladar na prova de vinhos. E imagine-se cada um de nós em escrutinador ou mero delegado de lista diante das urnas, prontas a abrir, para a contagem de votos. Apuremos o olfacto e monitorizemos que cheiro deita cada boletim. Antes disso (e como condição prévia para entrar neste laboratório de análises) vacinemo-nos contra o ‘covid partidário’ para não cairmos no logro autista de que ‘todo o voto no meu partido cheira bem e todo o voto fora do meu partido cheira mal’. É que foi este, durante mais de 40 anos pós-25 de Abril, o desbragado escancarar da goela oficial do regime ilhéu.

         Então, a que vos cheirou a maior urna do mundo, a urna dos vivos?

         Não estaremos longe da unanimidade, se disser que uns cheiram a alcatrão, outros a sacos de cimento e moios de areia, outros ao bolor da ignorância,  outros ao laranjano queijo-ilhéu, outros ao bafio inodor de frangos congelados, outros a promessas de cadeirões ainda no estofador, outros às notas volantes em clandestinos paraísos locais (também lhe chamam agora ‘fotocópias’) outros ainda ao ópio da ‘bazuca’ iminente, outros à pólvora do ódio contra o/a candidato/a, antes amigos do peito. A que mais cheirarão as urnas?... Ajudem-me. Talvez, sabe-se lá, andará por aí o perfume de alguma roda de saia ou nó górdio de gravata vistosa. Há ainda quem lhe descubra vestígios da estearina de sacristia ou incenso de mitra gótica. (Neste lote, foi assim durante os tais 40 anos já citados). Uma grossa maioria (ou não tanto) cheira à fidelidade cega, canina, inamovível da alcova partidária a que estão ligados por cordão umbilical. Juntando o olfacto à visão, numa sinestesia perfeita, houve quem visse na cruzinha trémula e enviesada o terrível ferrete do medo e da ameaça de perder o lugar, o subsídio, o abono, a benesse assistencialista.

         Há de tudo naquela panela de pressão, chamada urna. E o mais surpreendente, inaudito, é que todos esses cheiros, desde os mais pútridos e intragáveis aos menos perceptíveis, após o crivo das protocolares instâncias oficiais, são imediatamente transportados, a céu aberto, para os offshores da  soberaníssima comunicação social, que branqueia tudo e proclama Urbi et Orbi: “O Povo soberano votou conscientemente na continuidade – ou na rejeição – do Senhor Governo”!... E obedecendo ao bastão do patrão, os comunicadores engajados alteiam a joeira até às estrelas ou mergulham o desafortunado no sorvedouro adamastor!

         Estarão o(s) caloiro(s) ganhadores convencidos de que a sua vitória é a emanação pura e fidedigna dos votos que jazem na urna? Ai, se as urnas falassem… quantas surpresas ocultas desnudar-se-iam, principalmente aquela tão antiga e sempre actual: “O poder não se ganha, perde-se”.

         Quanto gostaria de dedicar, não um, mas muitos parágrafos, a todos os eleitores que no recôndito da assembleia de voto, com a sua mão decidida entregaram conscientemente a sua palavra de honra em prol do bem comum e do comando da grei a que pertencem! Esses – e serão muitos, oxalá - que renunciaram à vantagem egoística do seu palmo de terra ou de lucro ou de fama e optaram pelo valor mais alto, superior ao da sua circunstância pessoal, o valor da justiça contra a descriminação amiguista, da democracia contra a ditadura, do poder-serviço contra o poder-ambição!

         Porque já vai longo este exercício sobre a anatomia do voto, especificamente o voto autárquico, deixarei para uma possível oportunidade o elogio cirúrgico, mas verídico e optimista, desses valorosos cidadãos e cidadãs, de visão mais ampla, que sabem fazer da urna de hoje o glorioso mausoléu de amanhã!

 

         25.Out.21

         Martins Júnior     

 

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