Estalaram
na semana passada os últimos foguetes-fogos fátuos dos vencedores e, nos
antípodas, as lamúrias-desforras dos vencidos neste pequeno rectângulo luso,
esteja ele na Madeira, Açores ou Continente. E porque “nada do que é humano me
é estranho” e, por força maior, porque
esse “humano” mora na casa onde vivo, tornando-me parte integrante do seu
“habitat” – eis o móbil que não me deixa
ficar indiferente perante mais um de entre os episódios cíclicos a que se dá o
pomposo nome de Eleições.
Mais Um! – sublinho. Porque a lava
ululante que sai da boca de certos inflamados profissionais no climax eleitoral
– este é um momento histórico… estas são
as eleições decisivas… agora ou nunca… está em causa o futuro dos nossos
filhos, netos, bisnetos – tudo isso não passa de ridículas fábulas nas
bancas de feirantes: fome de fama, sede de cobiça, “nomes com que se o povo
néscio engana”, diria o nosso épico. Campanhas eleitorais são luas e marés que
vão e vêm, umas são outras virão.
Agora que a poeira de lume patriotarreca
assentou na cinza morna dos dias, agora é que se faz o balanço, o deve e o
haver do ‘negócio´ eleitoral. Proponho para isso uma prova de cheiro, idêntica
à do paladar na prova de vinhos. E imagine-se cada um de nós em escrutinador ou
mero delegado de lista diante das urnas, prontas a abrir, para a contagem de
votos. Apuremos o olfacto e monitorizemos que cheiro deita cada boletim. Antes
disso (e como condição prévia para entrar neste laboratório de análises)
vacinemo-nos contra o ‘covid partidário’ para não cairmos no logro autista de
que ‘todo o voto no meu partido cheira
bem e todo o voto fora do meu partido cheira mal’. É que foi este, durante
mais de 40 anos pós-25 de Abril, o desbragado escancarar da goela oficial do
regime ilhéu.
Então, a que vos cheirou a maior urna
do mundo, a urna dos vivos?
Não estaremos longe da unanimidade, se
disser que uns cheiram a alcatrão, outros a sacos de cimento e moios de areia,
outros ao bolor da ignorância, outros ao
laranjano queijo-ilhéu, outros ao bafio inodor de frangos congelados, outros a
promessas de cadeirões ainda no estofador, outros às notas volantes em
clandestinos paraísos locais (também lhe chamam agora ‘fotocópias’) outros
ainda ao ópio da ‘bazuca’ iminente, outros à pólvora do ódio contra o/a
candidato/a, antes amigos do peito. A que mais cheirarão as urnas?...
Ajudem-me. Talvez, sabe-se lá, andará por aí o perfume de alguma roda de saia
ou nó górdio de gravata vistosa. Há ainda quem lhe descubra vestígios da
estearina de sacristia ou incenso de mitra gótica. (Neste lote, foi assim
durante os tais 40 anos já citados). Uma grossa maioria (ou não tanto) cheira à
fidelidade cega, canina, inamovível da alcova partidária a que estão ligados
por cordão umbilical. Juntando o olfacto à visão, numa sinestesia perfeita,
houve quem visse na cruzinha trémula e enviesada o terrível ferrete do medo e
da ameaça de perder o lugar, o subsídio, o abono, a benesse assistencialista.
Há de tudo naquela panela de pressão,
chamada urna. E o mais surpreendente, inaudito, é que todos esses cheiros,
desde os mais pútridos e intragáveis aos menos perceptíveis, após o crivo das
protocolares instâncias oficiais, são imediatamente transportados, a céu
aberto, para os offshores da soberaníssima
comunicação social, que branqueia tudo e proclama Urbi et Orbi: “O Povo soberano votou conscientemente na
continuidade – ou na rejeição – do Senhor Governo”!... E obedecendo ao bastão
do patrão, os comunicadores engajados alteiam a joeira até às estrelas ou
mergulham o desafortunado no sorvedouro adamastor!
Estarão o(s) caloiro(s) ganhadores
convencidos de que a sua vitória é a emanação pura e fidedigna dos votos que
jazem na urna? Ai, se as urnas falassem… quantas surpresas ocultas
desnudar-se-iam, principalmente aquela tão antiga e sempre actual: “O poder não
se ganha, perde-se”.
Quanto gostaria de dedicar, não um, mas
muitos parágrafos, a todos os eleitores que no recôndito da assembleia de voto,
com a sua mão decidida entregaram conscientemente a sua palavra de honra em
prol do bem comum e do comando da grei a que pertencem! Esses – e serão muitos,
oxalá - que renunciaram à vantagem egoística do seu palmo de terra ou de lucro
ou de fama e optaram pelo valor mais alto, superior ao da sua circunstância
pessoal, o valor da justiça contra a descriminação amiguista, da democracia
contra a ditadura, do poder-serviço contra o poder-ambição!
Porque já vai longo este exercício
sobre a anatomia do voto, especificamente o voto autárquico, deixarei para uma
possível oportunidade o elogio cirúrgico, mas verídico e optimista, desses valorosos
cidadãos e cidadãs, de visão mais ampla, que sabem fazer da urna de hoje o glorioso
mausoléu de amanhã!
25.Out.21
Martins
Júnior
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