A
palavra e o cristal, realidades gémeas no seu espectro funcional, servem de
rampa de passagem para o observatório que hoje proponho ocupar. Tal como o
cristal poligonal, também a palavra e todo o texto em que ela se insere trazem
a marca da multissemia poliédrica, ou
seja, são susceptíveis de múltiplas interpretações, desde as mais consensuais
às mais contraditórias.
É
o caso. Volto sempre ao LIVRO, por excelência, em cada início da semana. Hoje,
por mais estranho que pareça, o texto - dito sagrado - traduz hoje uma realidade
eminentemente política. Conta-se num parágrafo apenas:
O
Nazareno, o “doce Jesus de Nazaré”, como lhe chamou Ernest Renan, fora
anunciado pelos profetas para restaurar o Reino de Israel e, nessa mesma aura,
assim o reconheciam os Doze, selecionados pelo próprio. Dois deles, ambos
irmãos, filhos de um armador dono de um barco de pesca, lobrigando já o trono
do futuro Rei, abordaram-no directamente e sem mais prefácios, meteram a cunha:
”Mestre, quando formares o governo do teu Reino, queremos ficar ao teu lado: eu
à direita e o meu irmão à esquerda”. Por outras palavras: ‘eu como primeiro
ministro e o meu irmão como ministro da presidência’.
Em
apenas um parágrafo, aí está a radiografia inexorável da história do Poder - do
passado, do presente e do futuro - sob todos os quadrantes onde o Poder assenta
arraiais. Não peço licença para actualizar, em dois ou três episódios, o teatro
breve que respiguei do LIVRO, mesmo que possa ferir algumas susceptibilidades.
CENA
1
Na
tômbola político-partidária das candidaturas, lá se metem furões, especialistas
em caça, um à socapa, outro sem máscara e ainda outro com o peso de um saco
azul ou com a leveza de um cheque: ‘olha, arranja-me aí um ludar de deputado,
mas elegível, dos primeiros; ou para vice-presidente ou ministro, secretário ou para a Câmara, ou para algum
cargo de confiança política. Conta comigo, posso não ter habilitações, mas sempre
fomos amigos’.
CENA
2
Para
a tal ou qual empresa público-privada, sabes que sempre fui gestor de um bar-mercearia
lá do bairro, também sou capaz de tomar
conta do cofre da tesouraria, não te esqueças, à direita ou à esquerda
pouco importa, quero é ficar ao teu
lado. Sou enfermeiro, doutor, economista, engenheiro e quejandos, vê lá o que
arranjas, senão vou denunciar-te daquilo que ‘tu sabes que eu sei’. E se der
certo, não vais ficar de mãos a abanar…
CENA
3
O
neo-presbítero, impecável no traje, gola alvíssima num pescoço anémico,
eclesiástico exemplar, ‘cabecinha à banda’, vai rojando a sotaina do bispo para
tentar calçar-se com as meias vermelhas de cónego, deste para monsenhor, de monsenhor para cardial e mais
além, mais, ‘mais do que promete a força
humana’. E se tanto não for possível, ao menos uma paróquia mais gorda que a
que tenho agora’…
CENAS
OUTRAS
Convido
quem me lê a que adicione outras cenas idênticas que, porventura, passar-se-ão
à sua volta. Onde está o Poder também está o dinheiro, a vertigem incurável do
oportunismo, do amiguismo, do calculismo milimétrico, bajulador.
Tiagos,
Joões e afins, essa geração réptil, mas arrogante, nunca mais acaba enquanto
houver luta desenfreada pelo Poder. Importante é saber a resposta do
Mestre. Vem em Marcos, 10, 35-45 . ‘Não sabeis o que estais a dizer ou a pedir.
O único posto que tenho para vos oferecer é um cálice de amarguras e um baptismo de sangue…
Quem, entre vós, quer ser o primeiro seja vosso servo e quem pretende ser o maior
seja o escravo dos outros… Não vim para ser servido, mas para servir”!
Políticos,
ministros, líderes, candidatos, será este o vosso móbil, único e assumido, ao
rondar as tenazes do dragão todo-poderoso?
Eclesiásticos,
hierarcas purpurados, ridiculamente carnavalados, de luzidios colares efeminados ao peito em lustroso escarlate palaciano (tudo lixo para Jesus de
Nazaré!) será o serviço do Povo de Deus
que vos faz (que nos faz!) correr ou, antes, o camuflado auto-serviço igual aos
reinos do mundo?
O
ultimato do Mestre da Galileia atravessa vinte séculos de uma jornada interminável
e traz-nos o eco da sua voz na palavra de ordem de Francisco Papa: “Poder é
Serviço. Mandar é Servir”!!!
17.Out.21
Martins Júnior
Sem comentários:
Enviar um comentário