quinta-feira, 3 de outubro de 2024

MACHICO NA BIBLIOTECA NACIONAL – LISBOA

                                                                     


               

Na realidade, o pódio magistral estava reservado a DANIEL PIRES, o “Mestre dos Investigadores”. E só por ele, Machico entrou no Átrio da grande catedral do livro, a Biblioteca Nacional, ao Campo Grande. Lisboa.

    Foi a chave de ouro que fechou o outonal setembrão. Lá dentro, uma coroa estelar de quinze escultores do verbo – escritores, filósofos, poetas, historiadores, cientistas, enfim, investigadores  - desenhou o perfil inteiro do “Mestre e Doutor”, cavaleiro andante que deambulou pelas terras e mares por onde naufragou  Luis Vaz de Camões e  pelas  cátedras da sábia curiosidade de Wenceslaw de Moraes, Camilo Pessanha e, antes, o visionário Fernão Mendes Pinto. Para quem se habituara a ver em Daniel Pires o cidadão pacato, humilde, quase anónimo no desenrolar do tropel quotidiano, ficou assombrado com o planisfério, mais amplo de ideia que de  geografia, em que navega Daniel Pires: desde a pátria de Elmano Sadino, Setúbal, até Glasgow e ao longínquo Moçambique, São Tomé e Príncipe, Cantão, Goa e Macau.

    Paladino da Língua Portuguesa e da História, o “Príncipe dos Investigadores”, como também foi cognominado na Biblioteca Nacional, serviu ao público português a prestimosa  oferta de duas obras datadas no tempo: “Dicionário de Imprensa Periódica do Antigo Regime em Portugal” (1704-1807)  e a (já lançada em Machico, 2023, no 250º aniversário do nascimento do Autor) “Obra Completa de Camões Pequeno, Francisco Álvares de Nóbrega”.

    De registar a qualificada abrangência da parceria organizadora do evento – o Centro de Estudos Globais da Universidade Aberta, a Biblioteca Nacional de Portugal, o Instituto Europeu das Ciências da Cultura Padre Manuel Antunes e o Centro de Estudos Bocageanos.

    Se na apresentação e análise  do acervo bio-bibliográfico mais vasto de Daniel Pires tiveram papel de charneira Miguel Real e José Pacheco Pereira, entre os prelectores, já no que concerne ao “Nosso Camões”, coube a José Eduardo Franco e a mim próprio  o elogio do sonetista maior nascido em Machico no ano de 1773. Não deixa de ser de  fino toque expressivo,, em termos de sintonia telúrica, que sejam dois autóctones de Machico a debruçar-se sobre a mensagem de um conterrâneo seu, duzentos e cinquenta anos após o percurso existencial do poeta nos mesmos caminhos e veredas que ele calcorreou.

    Pelo apreço manifestamente visível de todo o auditório durante a exposição da vida e obra dessa apaixonante personalidade, ficou patente o olvido a que gerações passadas  relegaram Francisco Álvares de Nóbrega, em Portugal Continental e, diga-se em abono da verdade, também na Madeira, se exceptuarmos Machico, onde já antes do 25 de Abril  se evocava a sua memória, em 30 de Novembro de cada ano. O conturbado período ante e pós- Revolução Francesa de 1789, cujas conquistas libertadoras puseram a nú contradições irredutíveis dentro da própria Igreja – lembremo-nos do grande número de clérigos madeirenses filiados em lojas maçónicas – foi essa anómala conjuntura que levou a Inquisição a condenar à prisão do Limoeiro, em Lisboa, o nosso conterrâneo, na mesma cela de outro notável intelectual, o poeta sadino Manuel Maria Barbosa du Bocage.

    Daniel Pires, num labor intenso,  expurgou dos arquivos da Torre do Tombo documentos e testemunhos inéditos que esclarecem a nebulosa em que sucessivos regimes mergulharam  a vida e obra de Francisco Álvares de Nóbrega, os quais estão patenteados ao grande público nesta edição, apresentada anteontem na Biblioteca Nacional.

    A título exemplicativo, transcrevo a mensagem dirigida da prisão do Limoeiro pelo poeta ao “Sereníssimo Senhor Dom João VI”, impetrando clemência e liberdade, soneto este que serviu de mote a outros quatorze sonetos, cinzelados de mestria literária e profundo queixume doloroso:

                            Príncipe excelso, em lúgubre masmorra

                            A que jamais dá luz do sol o facho

                            Gemo ao som do grilhão infame e baixo

                            Sem ter piedosa mão que me socorra.

 

                            Por mais e mais que pense e que discorra

                            Em minha vida um crime só não acho

                             Seja qual meu delito, o meu despacho:

                            Que me soltem, mandai, ou que enfim morra.

 

                            Quem culpa  cometeu é bem que pague

                            E a cadeia fatal que o pé lhe oprime

                            Com lágrimas de dor embora  alague

 

                            Porém não consintais que se lastime

                            Na mesma estância e em confusão se esmague

                            A singela inocência a par do crime

 

      03.Out.24

      Martins Júnior

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