Tinha-me proposto, anteriormente, aprofundar a essência dos
acontecimentos ocorridos neste modesto rincão madeirense, chamado Ribeira Seca.
Porque o que mais se tem relevado publicamente, quer no áudio-visusal, quer nas
redes sociais, tem a ver com um cenário transbordante de alegria, pacificação e
até de um certo folclore tão caro à sensibilidade colectiva em circunstâncias
festivas. Mas é pouco, muito pouco. Porque o “caso” radica em pressupostos,
mitos atávicos e grosseiras distorções
que abalam os mais elementares códigos de qualquer ser pensante e, por maioria
de razão, a mentalidade dos crentes, exigindo da nossa parte uma corajosa
reflexão. A este propósito não me sai do ouvido e da consciência crítica aquele
interpelação, em forma de samba, do
grande poeta-músico-diplomata brasileiro Vinicius de Morais: “Você que olha e
não vê, Você que reza e não crê”… Mas eu quero ver – não apenas olhar – o “caso”
Ribeira Seca, convidando à mesa deste repasto espiritual quem se sentir tocado
por este impulso de penetrar a casca da árvore e descobrir-lhe a seiva
vivificadora.
Não é tarefa mole nem túnel seguro. Por isso, enquanto
procurava um foco projector que iluminasse o caminho a seguir, deparei-me com o
artigo do Doutor em Filosofia e Teologia, Prof. Anselmo Borges, em DN/Lisboa. É isto mesmo – exclamei - o guião ou “GPS” que conduzir-me-á à meta
proposta, concluindo pelo paradoxo de uma Igreja dual, quase contraditória. Ei-lo,
com a devida vénia:
A
Igreja tem dentro dela, inevitavelmente, uma tensão, que a conduz a um
paradoxo. Esta tensão e este paradoxo foram descritos de modo penetrante,
preciso e límpido pelo sociólogo Olivier Robineau, nestes termos: “A Igreja
Católica é uma junção paradoxal de dois elementos opostos por natureza: uma
convicção — o descentramento segundo o amor — e um chefe supremo dirigindo uma
instituição hierárquica e centralizada segundo um direito unificador, o direito
canónico. De um lado, a crença no invisível Deus-Amor; do outro, um aparelho
político e jurídico à procura de visibilidade. O Deus do descentramento dos
corações que caminha ao lado de uma
máquina dogmática centralizadora. O discurso que enaltece uma alteridade
gratuita coexiste com o controlo social das almas da civilização paroquial — de
que a confissão é o arquétipo — colocado sob a autoridade do Papa. Numa
palavra, a antropologia católica tenta associar os extremos: a graça abundante
e o cálculo estratégico. Isso dá lugar tanto a São Francisco de Assis como a
Torquemada.”
É com este paradoxo que o Papa Francisco tem
de conviver, ao mesmo tempo que tem feito o seu melhor para dar o primado ao
Evangelho, ao Deus-Amor, para que a Igreja enquanto instituição — e é
inevitável um mínimo de organização
institucional — não atraiçoe a Boa Nova de Jesus. Ele é cristão, no sentido
mais profundo da palavra: discípulo de Jesus, e quer que todos na Igreja se
tornem cristãos, a começar pela hierarquia. Assim, tem denunciado as doenças da
Cúria, avisa os bispos e cardeais para que não sejam príncipes, anuncia para
breve uma nova Constituição para a Cúria, o governo central da Igreja”.
Sublinho: Uma Igreja “que
dá lugar tanto a São Francisco de Assis como a Torquemada”. E volto à
pergunta em epígrafe: Em qual Igreja
acreditar?...
Agradeço. Prof.
Anselmo, a luminosa pista que nos deixou hoje para descobrirmos amanhã o “dentro mais dentro” dos
acontecimentos ocorridos.
21.Jul.19
Martins
Júnior
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