Correndo
o risco de perder, apostaria em que a esmagadora proporção dos cérebros
viventes passa ao largo daquela estância ferial, designada por 8 de Dezembro.
Dia de folga, associado a efemérides
voláteis consoante os lugares, os acontecimentos aí ocorridos, personagens
particulares ou colectividades múltiplas, o que fica por saber e esclarecer são
as raízes que lhe deram corpo.
Desde
1646, ano em que D.João IV depôs a coroa real e colocou-a na imagem de Nossa
Senhora da Conceição de Vila Viçosa, em templo mandado construir pelo
Condestável do Reino, Nuno Álvares Pereira após a vitória de Aljubarrota no
século XIV, desde então o vitorioso monarca da Restauração proclamou-a Rainha
de Portugal: é a reminiscência tetrassecular que sustenta o 8 de Dezembro, a
qual foi repercutida noutras regiões e concelhos, entre os quais a cidade de
Machico, de que é Padroeira.
Foi
enorme a cruzada expansionista do culto à Imaculada. Penetrou com a mesma
simpatia tanto na ruralidade das ermidas como nos palácios da nobreza,
inclusive na cátedra dos intelectuais, chegando até à Universidade de Coimbra, onde
os estudantes, ao ascenderem aos superiores graus académicos, incluíam “o
juramento solene na Conceição Imaculada da Mãe de Deus”, uma práxis abolida
após a proclamação do dogma, em 1854, pelo Papa Pio IX.
Mas em que consiste, afinal, o dogma da
Imaculada Conceição?
E
que ilações para os tempos que correm?
Invertendo os termos da nomenclatura oficial –
Nossa Senhora da Conceição – encontraremos a resposta: Conceição (ou concepção imaculada)
de Nossa Senhora, querendo com este título significar que Maria de Nazaré, a
futura Mãe do Nazareno, foi prendada, desde a nascença, por um privilégio
especialíssimo, jamais outorgado a
nenhum outro mortal: o de nascer sem a ‘mácula’ (ou pecado original), o que,
por sua vez, a tornou geneticamente livre de qualquer má tendência e demais deficiências
hereditárias a que todos os seres humanos estão condenados “pelo pecado de Adão”.
Trata-se de uma interpretação – esta do pecado original – congeminada por Agostinho
de Hipona, no século IV, apoiada em premissas puramente indiciárias, cujo
desenvolvimento e exegese não cabem neste breve apontamento.
O
que importa decifrar é o alcance semântico da designação “Imaculada Conceição”
(Concepção) desse pequeno-Grande Ser”, desde o primeiro instante em que Ana e Joaquim
consumaram o acto de gerar e trazer ao
mundo Aquela a quem puseram o nome de Miriam
ou Maria. Nos nossos dias, em que tanto se investiga e deseja a milagrosa
vacina, poderemos compreender o tal privilégio: Maria nasceu já vacinada, desde
a concepção no seio de Ana, contra toda a espécie de imperfeição, deficiência
ou pecado. No limite, diremos que Maria foi predestinada para a perfeição
absoluta, de tal forma, que mesmo que quisesse errar ou pecar, nunca poderia
fazê-lo, por estar predeterminada para a suma perfeição.
Embora
os monarcas portugueses tivessem usado a Senhora para fins bélicos e
patrioteiros – uma tara incurável de todo o poder político – a realidade é
outra, a concepção sem-mácula da jovem de Nazaré. Motivo de festa, coros
angélicos, repiques argênteos de sinos nas catedrais, apoteose total. Mas, na
base e no vértice, não são para Ela os clangorosos panegíricos, porque tratou-se
de um privilégio puramente gratuito da parte do Supremo Ordenador do Universo.
O antídoto anti-mal foi obra e graça de Outrem e não d’Ela.
Por
isso, neste dia, em contraste e contra-luz, presto homenagem a todos quantos –
homens e mulheres, novos e velhos – fazem da vida uma luta porfiada e sempre
inacabada para corrigir erros, emendar caminhos, escalar montanhas e abismos
até alcançar a perfeição possível a um ser humano. Admiro e ajoelho-me diante
de quem nasceu nas trevas e carregado de traumas genéticos, mas depois consegue
revestir-se de luz, de generosidade, de altruísmo heróico. Aplaudo os atletas paralímpicos
e os vencedores anónimos que ultrapassaram as muralhas da sua deficiência e
subiram ao vitorioso pódio da Vida. Saúdo Demóstenes, tartamudo de nascença,
que macerando a língua com os calhaus da praia, tornou-se o Príncipe dos
oradores atenienses. Saúde Madalena, a pecadora (todas as Madalenas) que venceu
as pecaminosas esquinas da cidade de Jerusalém e tornou-se a apaixonada
bandeirante das causas do Nazareno.
E,
mais que pela concepção imaculada, saúdo Maria pela coragem em assumir a
maternidade de um Homem contra o qual (e contra Ela) se atiraram como feras os
poderosos deste mundo. Admiro-a pela sensibilidade de mulher atenta, aquando
das bodas de Caná da Galileia. Adoro-a, pela fortaleza, “mais do que permitia a
força humana”, acompanhando o Filho até à última gota de sangue, Ela, a
inamovível Estátua da Dor no alto do Calvário!
Se
grande é o Seu privilégio por nascer gratuitamente virada para o Sol Eterno,
maior é o galardão dos que, nascidos nos antros da escuridão, guindaram-se ‘a passos
de gigante e a golpes de montante’ até ao relativo Graal da Felicidade, a sua e
a dos outros.
07.Dez.20
Martins Júnior
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