segunda-feira, 7 de dezembro de 2020

VACINADA CONTRA TODOS OS VÍRUS!

                                                                              


Correndo o risco de perder, apostaria em que a esmagadora proporção dos cérebros viventes passa ao largo daquela estância ferial, designada por 8 de Dezembro. Dia de folga, associado  a efemérides voláteis consoante os lugares, os acontecimentos aí ocorridos, personagens particulares ou colectividades múltiplas, o que fica por saber e esclarecer são as raízes que lhe deram corpo.

Desde 1646, ano em que D.João IV depôs a coroa real e colocou-a na imagem de Nossa Senhora da Conceição de Vila Viçosa, em templo mandado construir pelo Condestável do Reino, Nuno Álvares Pereira após a vitória de Aljubarrota no século XIV, desde então o vitorioso monarca da Restauração proclamou-a Rainha de Portugal: é a reminiscência tetrassecular que sustenta o 8 de Dezembro, a qual foi repercutida noutras regiões e concelhos, entre os quais a cidade de Machico, de que é Padroeira.

Foi enorme a cruzada expansionista do culto à Imaculada. Penetrou com a mesma simpatia tanto na ruralidade das ermidas como nos palácios da nobreza, inclusive na cátedra dos intelectuais, chegando até à Universidade de Coimbra, onde os estudantes, ao ascenderem aos superiores graus académicos, incluíam “o juramento solene na Conceição Imaculada da Mãe de Deus”, uma práxis abolida após a proclamação do dogma, em 1854, pelo Papa Pio IX.  

 Mas em que consiste, afinal, o dogma da Imaculada Conceição?

E que ilações para os tempos que correm?

 Invertendo os termos da nomenclatura oficial – Nossa Senhora da Conceição – encontraremos a resposta: Conceição (ou concepção imaculada) de Nossa Senhora, querendo com este título significar que Maria de Nazaré, a futura Mãe do Nazareno, foi prendada, desde a nascença, por um privilégio especialíssimo,  jamais outorgado a nenhum outro mortal: o de nascer sem a ‘mácula’ (ou pecado original), o que, por sua vez, a tornou geneticamente livre de qualquer má tendência e demais deficiências hereditárias a que todos os seres humanos estão condenados “pelo pecado de Adão”. Trata-se de uma interpretação – esta do pecado original – congeminada por Agostinho de Hipona, no século IV, apoiada em premissas puramente indiciárias, cujo desenvolvimento e exegese não cabem neste breve apontamento.

O que importa decifrar é o alcance semântico da designação “Imaculada Conceição” (Concepção) desse pequeno-Grande Ser”, desde o primeiro instante em que Ana e Joaquim consumaram o acto de gerar e trazer  ao mundo Aquela a quem puseram o nome de Miriam ou Maria. Nos nossos dias, em que tanto se investiga e deseja a milagrosa vacina, poderemos compreender o tal privilégio: Maria nasceu já vacinada, desde a concepção no seio de Ana, contra toda a espécie de imperfeição, deficiência ou pecado. No limite, diremos que Maria foi predestinada para a perfeição absoluta, de tal forma, que mesmo que quisesse errar ou pecar, nunca poderia fazê-lo, por estar predeterminada para a suma perfeição.

Embora os monarcas portugueses tivessem usado a Senhora para fins bélicos e patrioteiros – uma tara incurável de todo o poder político – a realidade é outra, a concepção sem-mácula da jovem de Nazaré. Motivo de festa, coros angélicos, repiques argênteos de sinos nas catedrais, apoteose total. Mas, na base e no vértice, não são para Ela os clangorosos panegíricos, porque tratou-se de um privilégio puramente gratuito da parte do Supremo Ordenador do Universo. O antídoto anti-mal foi obra e graça de Outrem e não d’Ela.

Por isso, neste dia, em contraste e contra-luz, presto homenagem a todos quantos – homens e mulheres, novos e velhos – fazem da vida uma luta porfiada e sempre inacabada para corrigir erros, emendar caminhos, escalar montanhas e abismos até alcançar a perfeição possível a um ser humano. Admiro e ajoelho-me diante de quem nasceu nas trevas e carregado de traumas genéticos, mas depois consegue revestir-se de luz, de generosidade, de altruísmo heróico. Aplaudo os atletas paralímpicos e os vencedores anónimos que ultrapassaram as muralhas da sua deficiência e subiram ao vitorioso pódio da Vida. Saúdo Demóstenes, tartamudo de nascença, que macerando a língua com os calhaus da praia, tornou-se o Príncipe dos oradores atenienses. Saúde Madalena, a pecadora (todas as Madalenas) que venceu as pecaminosas esquinas da cidade de Jerusalém e tornou-se a apaixonada bandeirante das causas do Nazareno.

E, mais que pela concepção imaculada, saúdo Maria pela coragem em assumir a maternidade de um Homem contra o qual (e contra Ela) se atiraram como feras os poderosos deste mundo. Admiro-a pela sensibilidade de mulher atenta, aquando das bodas de Caná da Galileia. Adoro-a, pela fortaleza, “mais do que permitia a força humana”, acompanhando o Filho até à última gota de sangue, Ela, a inamovível Estátua da Dor no alto do Calvário!

Se grande é o Seu privilégio por nascer gratuitamente virada para o Sol Eterno, maior é o galardão dos que, nascidos nos antros da escuridão, guindaram-se ‘a passos de gigante e a golpes de montante’ até ao relativo Graal da Felicidade, a sua e a dos outros.

 

07.Dez.20

Martins Júnior

     

                       

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