Chamem-lhe
os filósofos a síntese perfeita entre tese
e antítese. Ou quadratura do círculo. Ou, ainda, reduzam tudo à escala
dodecafónica de Arnold Shonberg. Mas a evidência aí está, todos os dias e em
todos os espaços: a diversidade – simultânea e contraditória - dos
acontecimentos da história! Enquanto uns cantam, outros choram. E enquanto
estes choram, outros vendem lenços. Enquanto avançam os corono-vírus, outros, todos procuram a água pura e adoram-na.
Noutras paragens, até diminuem os efeitos nocivos do CO2. Enfim, o “desconcerto
do mundo”!
Parece que o cisne negro roçou a linha vermelha da atmosfera e por aí anda à
solta, clandestino e assassino, a abalar as profundezas planetárias, a semear
os vírus da neurose e da morte. Mas não assim em todos os mares, não assim em
todos os recantos. Em um deles, (com isso, talvez, se chame ‘santo’) as asas
são brancas, o corpo é espírito e o pranto é canto – canção de outrora, sempre
antiga e sempre nova.
Aconteceu num pequeno rincão situado na
ilha vizinha, cuja comunidade e cujo templo tomam o bem selado nome de “Espírito
Santo”.
Foi
ali que ontem, Domingo, tudo se
transfigurou na brancura de um sol convidativo sob um céu azul e tudo se
traduziu em paz, harmonia, espiritualidade, confraternização, festa.
Reabriram-se as portas da vetusta Capela do Espírito Santo, após dois anos de acurada reparação. O
presente abraçou-se com o passado, mais precisamente o rio da história fez-se
enorme ponte entre o século XVII (data da sua construção inicial) e o século
XXI, o dia 8 de Março de 2020, quando o templo voltou definitivamente à sua vocação originária.
Não houve foguetório nem parangonas
publicitárias. Perfeito, como convinha àquele dia. Tudo muito fino como as
almas puras, tudo muito genuíno como os corações sem pregas, tudo gracioso e
doce como o amor de mãe, no Dia da Mulher, 8 de Março. Para mim, um florilégio
de saudades. Com a emoção irresistível destes momentos, recordei 1963 (faz
agora 57 anos!): abriram-se aquelas portas e pedi licença para entrar na minha
primeira missão de paroquialidade no arquipélago da Madeira.
Como seria a ilha (dourada só a areia,
que não a vida) nesses recuados tempos, volvidas que são quase seis décadas?...
Nada fácil, sobretudo para um jovem de 25 anos, padre ‘caloiro’, para lá
enviado com guia-de-marcha punitiva por
causa de um sermão feito na Sé Catedral, no super-patriótico “Dia Primeiro de
Dezembro” de 1962.
Mais que não fosse, por um imperativo
de gratidão, impunha-se a minha saudação aos presentes, dado que a grande
tribuna dos amigos e amigas de outrora (era uma família aquela comunidade) já
pertenciam ao cortejo “daqueles que da
lei da morte se vão libertando”. Por
deferência do Prelado Diocesano, presidente da celebração, prestei a minha
homenagem aos filhos, netos e bisnetos dos meus antigos companheiros de estrada
do humanismo e da espiritualidade, entre 1963-1965, cuja síntese dou aqui por
reproduzida:
“Estas paredes falam-me e sinto-as como
desde a primeira hora em que me receberam. Estes arcos de pedra abraçam-me com
a mesma emoção com que os abracei há 57 anos. Não estão aqui os homens e as
mulheres que me acolheram em suas casas e me mataram a fome em tempos adversos:
da sua pobreza fizeram o meu pão e a minha força. Não estão cá, mas eu vejo-os vivos,
sorridentes, e sou capaz de colocá-los, um a um, os seus retratos nesta sagrada
galeria da vossa igreja. Foram eles que ajudaram este, então jovem padre,
lançado num deserto, a não desistir logo
da sua missão. Quem me enviou para cá, quis mandar-me para um deserto, mas os
vossos pais e avós transformaram a minha vida num paraíso: pela dedicação, pelo
sacrifício partilhado, pela amizade, pela música. Sim a música e o teatro, a
romagem e missa campal da Comunhão Solene no Pico Castelo, as peregrinações à
capela de São Pedro, durante três dias e três noites, para alcançar a chuva
(era já Abril e nem um pingo de água para as sementes lançadas à terra em
Novembro anterior) e logo a seguir a aluvião benfazeja sobre os campos
ressequidos. Permitam-me acrescentar (que ainda hoje estou a ouvir os ecos da "Missa, a Duas Vozes", de
Luigi Perosi, cantada em latim por homens e mulheres, nados e criados nesta terra. Já todos ou quase todos
partiram. Que beleza, as vozes desses cantores, a maior parte sem escola nem
literacia, mas vozes quentes, bem timbradas!). E vós que aí estais, Grupo
Folclórico desta ilha, rebentos em flor daqueles homens e mulheres (já
cá não estão muitos deles!) que no Campo de Baixo, Campo de Cima, Lapeira e Ponte, criaram um corpo e um espírito de fraternidade
artística e são companheirismo que perduram até hoje! Mantende sempre viva a
chama dos vossos antepassados.”
“Ao fazer a retrospectiva destes 57
anos, fico com a sensação daquelas pessoas que verdadeiramente se amam: podem
passar meses, anos e até décadas sem se verem, mas quando se reencontram parece
que nada se passou, parece que foi ontem o primeiro encontro. Se alguma
mensagem vos deixo, inspiro-me no Orago desta comunidade: O Espírito Santo!
Asas para voar! Porque, como dizia Madame Leseur, “uma alma que se eleva –
eleva o mundo”. Elevai a vossa terra. Fazei aquilo que os outros não puderam
fazer. E, sobretudo, não deixeis que ninguém vos corte as asas, que ninguém
esmoreça no vosso espírito aquele fogo interior, no dizer de Goethe, “ânsias de
subir, cobiças de transpor”. Agarrados à terra-mãe e sempre com os olhos mais
acima e mais além”.
09.Mar.20
Martins Júnior
Comovente Pe. Martins este encontro fraterno com a sua primeira missão paroquial. Vejo nesta sua homenagem a um povo sofredor e isolado do mundo, a alegria e a saudade das lutas sociais e religiosas que fizeram o lume novo da comunidade da Ribeira Seca. Um bem haja pela sua inabalável persistência.
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