Ainda
chego a tempo de apagar a centésima vela em homenagem àquela que durante o dia
era sol radioso de Julho e, quando a noite caía, erguia-se a sua voz, luar de
Agosto, tão serena e leve, que mais
parecia, “por entre as oliveiras, a alma de um justo subindo ao céu”. Pedi a
Guerra Junqueiro esta inspiradora imagem, porque era assim o timbre dela e
também porque o ‘poeta alexandrino” assim titulara o seu poema dedicado “Aos Simples”.
Esperei,
também eu, entre a gente simples, o genuíno povo luso (de onde ela veio e para
onde voltou) até chegar a vez de lhe cantarmos em uníssono : “Pode haver quem compre o teu chão sagrado,
mas a tua vida, não”. Exaltem outros
a Diva, a Rainha do Fado, a Voz da Pátria – que eu vou dizer da vida simples,
chã e louçã, com que Amália acompanhava os mais Simples, o povo miúdo do campo
ou das cidades, dos continentes ou das Ilhas.
Corria
o primeiro semestre de 1965. E no Porto Santo corriam também as filmagens das Ilhas Encantadas, uma produção
luso-francesa, realização de Carlos
Vilardebó e fotografia de Jean Rabier e Elso Roque. Com Amália contracenava um
talentoso jovem actor Pierre Clémenti, já famoso pela participação em O Leopardo, de Luchino Visconti. Acompanhei
de perto os noventa dias de trabalhos, em redor da toda a ilha. Pediu-me a
direcção do velho Jornal da Madeira que fizesse a cobertura do referido acontecimento,
a que não me furtei, até porque, como pároco do Espírito Santo, era meu dever
colaborar com o órgão oficial diocesano.
É
da centenária Amália que vos falo, da sua singeleza de trato, da facilidade com
que se entrosava entre as pessoas mais simples da ilha. Dois ou três traços
servirão de exemplo.
No
intervalo das filmagens, Amália, liberta da encenação dos grandes palcos e
trajando ao gosto popular (na película, a ilha era deserta, abandonada), sem
atavios nem maquilhagens, aproveitava o tempo para falar com os circunstantes,
curiosos como eu, suficientemente afastados das câmeras. Que espanto o meu, ao
ouvi-la falar largo tempo com um dos motoristas
à nossa beira. Assunto: marcas de carros e respectiva mecânica. Achava
eu uma enormidade que um artista de tão alto gabarito se ‘dignasse’ perder tempo com uns
vulgares de Lineu, como nós que ali estávamos.
Ficou-me
de Amália a cordialidade e até o chiste humorístico ao apelidar-me “Que padre bem apanhado”, o que não a
impediu de chamar-me a atenção, após uma das actuações do nosso Grupo Folclórico
no hotel Porto Santo, observando-me para a exibição de três dos bailados: “Não apresente mais, padre, aquele número
que mais parece uma rumba sul-africana. E quanto aos outros dois, a ‘Ceranda e
a Padeirinha’, olhe que esses não são do Porto Santo, já ouvi essa e outra
versões no Continente” Tudo dito, mas só meio feito. De futuro, nunca mais
exibimos o primeiro, era uma adaptação minha. A Ceranda e a Padeirinha, após reunir com o grupo, decidimos
continuá-las, sobretudo porque, desde tempos imemoriais, faziam parte da tradição popular da ilha. No
entanto, confortou-me o seu elogio ao Baile
Ladrão e aos Moinhos de Vento, embora
este da minha lavra. Que simplicidade e que grandeza, num mesmo gesto! Quem é verdadeiramente grande revela-se belo
e transparente até nos mais singelos retalhos da vida.
Um
terceiro testemunho, identificado com a idiossincrasia do nosso povo crente,
acontecia sempre após a prestação do Grupo: Amália dava alguns momentos de
amena cavaqueira e, à despedida, lá vinha o sacramental voto do adeus: “Até amanhã, padre, se Deus quiser”. Foram
tantas as vezes do ‘Se Deus quiser’ que,
mercê da sua franqueza e abertura, não me contive: “Ó Amália, perdoe-me a ousadia, mas esse ‘Se Deus quiser’ pode ser uma afronta
ao próprio Deus. Imagine um condutor tresloucado e alcoolizado agarra-se ao
volante, mata-se a si e a outros, vamos culpar Deus pelo crime? Foi Deus que o
quis?”. A Rainha pensou, duvidou e ripostou sem pregas: “Este é o meu hábito desde criança. Olhe,
padre, até pode ter razão, mas eu vou continuar
a dizer Até amanhã, se Deus quiser”. Uma alegre risada de quem se sente bem
consigo e com os outros encerrava mais um saudável episódio extra-filmagens.
Tinha
Amália o brilho e a maturidade da idade da ternura, a caminho do meio-século.
Não sei se alguma vez , entre o fastígio dos grandes palcos e a euforia dos
estrondosos aplausos, ter-se-á ela
lembrado dos encantos da Ilha Dourada. Nós não esquecemos. E hoje, volvidos 55
anos, trazemos-lhe este bucólico ramalhete de violetas guardadas na nossa memória
para emoldurar o seu trono, lá onde esteja e lá onde existam as suas eternas Ilhas Encantadas.
23.Jul.20
Martins Júnior
Simplesmente FABULOSO !
ResponderEliminarCertamente Amália já se remexeu no túmulo.
Muitos parabéns por tanta eloquência e tanta simplicidade, meu caro amigo.