sábado, 11 de julho de 2020

TERRA, SEMEADOR E SEMENTE – A TRILOGIA UNA E MÚLTIPLA


                                                           

       Se a cada rosto seu gosto e a cada dia seu guia, também a cada semana, ao princípio e ao fim,  há sempre um mote e uma glosa, um estrela e um clarim.   No meu caso, confesso a preferência: vem-me ao encontro a inspiração bíblica, extensiva a todo o planeta. Por ela perpassa a luz penetrante do Nazareno, o seu pensamento e a sua visão holística do mundo, da história, do homem totalizante, na sua universalidade e na sua individualidade.
         Neste fim-de-semana, olho pela janela e vejo a imponente silhueta do Semeador. No chão a marca rude de uns pés rurais, a tiracolo  a seira larga  e, soltando como pétalas das suas mãos, os grãos de trigo procurando um seio – terra, pedra, espinheiro ou sequeiro – que os receba.
         É da alegoria do Semeador, a um tempo bucólica e perturbadora, que  trata o texto de Lucas, 8., a qual deu origem à famosa peça oratória do Padre António Vieira, o Sermão da Sexagésima, pregado em Lisboa, na Capela Real, em 31 de Janeiro de 1655. Bem me apeteceria transcrevê-la hoje e lê-la amanhã, na íntegra, senão aos homens, ao menos às aves que acompanham a trajectória do Semeador. Recorto apenas um excerto do capítulo X:  O pregador há-de saber pregar com fama – e sem fama. Mais diz o Apóstolo. Há-de pregar com fama – e com infâmia. Pregar o pregador para ser afamado, isso é do mundo; mas infamado – e pregar o que convém – ainda que seja com descrédito da sua fama? Isso é que é ser pregador de Jesus Cristo”.   
        
Será, pois, em suculento prazer literário, intelectual e espiritual alimentar este fim-de-semana com a leitura citada. Da minha parte e de quem quiser acompanhar-me, ficar-me-ei pela análise semântica dos três elementos em cena: Terra, Semente e Semeador. Talvez por influência de uma semana em exercício de reflexão cirúrgica sobre temáticas afins, confronto-me na trilogia proposta pelo Mestre de Nazaré: um Emissor, uma Mensagem, um Destinatário ou Receptor.
         Enquanto observador externo (heterodiegético) torna-se evidente a analogia do Semeador-emissor, da Mensagem-semente e do Destinatário-terra. Da sintonia perfeita desta tríade nasce o jardim terreal que todos ansiamos, flutua em todo o planeta  a seara fértil que alimenta o mundo. Pelo contrário, quando o Emissor não semeia ou semeia (o) mal; quando a Mensagem é oca ou turva ( oh, as fakenews) e quando o Receptor já não é terra, mas pedra, espinheiro, paiol, antro fétido e letal, então entramos todos no dantesco inferno de um Covid terminal.
         Mas não fica por aqui o olhar vigilante do observador (agora, homodiegético), isto é, quando somos nós próprios (cada um de nós) que realizamos a unidade dessa sintética e ampla trindade. Num esforço de introspecção e auto-análise, descobrimos afinal que, dentro de nós, concentramos a tríplice convergência da relação humana, nas suas múltiplas derivas. Somos o Semeador, somos a Semente e somos a Terra. Sobretudo, a Terra. Depende de nós – e da nossa “circunstância” – tornarmo-nos terra arável, deserto árido, pedra sufocante, espinheiro devorador ou antro infectado de monstros invisíveis.
         Por aqui fico. A quem achar por bem, deixo todo o espaço do mundo para continuar a reflexão e concretizar o ‘como’, ‘o quando’ e o ‘onde’ podemos realizar a una e múltipla trilogia, a que somos chamados.
“Semeadores de sombras e quebrantos?”, como diria Antero de Quental. Ou, antes, “Semeadores de Primaveras e Cravos de Abril!”, como  foi o saudoso e sempre vivo Mário Tavares.
“Saiu o Semeador a semear”… recomenda todos os dias o doce Nazareno!

11.Jul.20
Martins Júnior        

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