Estou
aqui, diante da folha branca, entre dois impulsos contraditórios, mas tremendamente
iguais na pesada agressividade que comportam. Dividido entre o místico ardor de
um poema épico e a fogosa lava de uma catilinária, não posso deixar passar
indiferente o texto musculado da carta dirigida pelos bispos brasileiros ao
presidente Bolsonaro, acusando-o de dois atentados, qual deles o mais perverso:
primeiro, o de autor moral das vítimas do Covid no Brasil; o segundo, o de
profanador blasfemo por usar o nome de Deus como semente do ódio.
Já
há muito esperava eu que do episcopado brasileiro (de tantas e tão corajosas
tradições sócio-religiosas) surgisse aquele enérgico protesto que se impunha,
por parte da Igreja oficial, contra as arbitrariedades e cínicas barbaridades
do Primeiro Magistrado da Nação, justamente invectivado e condenado pela
comunidade médica, intelectual e social
do país e todo o mundo civilizado. A queixa-crime apresentada pela sociedade
civil no Tribunal da Haia, acusando-o de genocídio, enquanto aguarda os seus trâmites,
merece a nossa maior solidariedade aplauso.
Honra,
Valor e Mérito ao episcopado brasileiro, à gloriosa plêiade de
bispos-verdadeiros pastores, subscritores do histórico documento, na esteira
dos seus antecessores, tais como António Fragoso, Hélder da Câmara, Duarte
Calheiros. Gente firme, da estirpe de um Frei Betto, Leonardo Boff, Alípio
Freitas e de muitos outros padres presos
ou exilados do país, alguns deles que lá conheci.
Devo
dizer que não me seduz nem me convence a pastosa mistela de um discurso
proselitista que traz Deus para a cena político-governativa, fazendo do nome de
Deus a salsicha ensanduichada no meio do papo-seco da intragável propaganda.
Detesto, indispõe-me até à medula, ouvir políticos e governantes exibirem, iniciarem
ou acabarem os delírios retóricos sob o nome de Deus, que trazem na boca mas
expulsam-nO das mesmas mãos que governam e assinam decretos. Deveriam ser
proibidos de o fazer. Porque o evangelho nas mãos de fanáticos demagogos
torna-se a sofisticada cartilha dos
malfeitores. Aí está o paradoxo do Brasil: foram os chamados “evangélicos” que
levaram Bolsonaro ao poder!
Por
isso, o episcopado brasileiro cumpriu, mais uma vez, a sua missão de vigilantes
atentos (episcopus=vigia, etimologicamente,
o que olha em toda a volta). Em prol das suas comunidades. Não se limitaram à
água benta ou ao óleo benzido. Saíram à praça, arregaçaram as mangas, não se
acobardaram nos salões do Paço diocesano, pelo contrário, afrontaram o palácio ‘real’
e, como João Baptista, denunciaram energicamente: Não te é lícito… Pára de
matar o povo, tira dessa boca suja o nome de um Deus limpo e justo!
Herdeiros
das Conferências de Medellín (1968) e de Puebla (1979) são os mesmos que
agregaram em magna assembleia o povo amazónico e levaram ao Papa Francisco a
proposta de ordenação de homens casados para suprir a inexistência de sacerdotes
naquele imenso território. Pena foi que o corajoso e solícito Francisco tivesse
sucumbido perante a corte dos cardeais, a quem ele próprio já chamou os “corvos
do Vaticano”…
A postura firme e directa dos bispos
brasileiros merecia aquele poema épico que acima referi e, em contraponto, ao
comportamento de Bolsonaro deveria levantar-se o tsunami universal de uma
ciclópica contestação.
Envolvo
nesta homenagem todos aqueles que, por outros caminhos, libertam o povo e
fazem-no crescer com dignidade e autonomia. Aqui na Madeira também. Uma
saudação telúrica e, por isso, avassaladora – porque a merece – o Padre Rui de
Sousa, Pároco dos Prazeres que, pelo amor à terra e ao seu povo tem construído,
não apenas a prestimosa Quinta Pedagógica, mas sobretudo tem feiro a saudável
pedagogia da paisagem rural e das suas gentes. Bem haja!
29.Jul.20
Martins Júnior
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