quinta-feira, 29 de abril de 2021

A MITRA, A SOTAINA, A MÁQUINA FOTOGRÁFICA E O ‘CASSE-TÊTE’ - CENAS DE UM ESTÁDIO CRISMAL

                                                                          


O título, em linguagem-cripto, toma a parte pelo todo ou o instrumento pelo utente, a figura de estilo chamada sinédoque/metonímia. Propositadamente, para não ferir os olhos do espectador/leitor com este quarteto tão bizarro: um Bispo, um Padre, um Fotógrafo e um Polícia. O “estádio crismal” designa o lugar do crisma, em contraponto com o estádio desportivo do Moreirense.

Pois, esta crónica vem mesmo a propósito do sucedido no referido recinto, após o jogo Moreirense vs Porto, precisamente aí, onde se consumou o escandaloso ataque de um tal Pedro Pinho ao operador de imagem da TVi. Acompanhei os comentários subsequentes, entre os quais, o de um ouvinte da ‘Antena 1’ – ao entrar no futebol, parece que as pessoas  ficam em estado de hipnose – e as adequadas extrapolações dos especialistas José Manuel Meirim e Manuel Queirós: casos destes passam-se noutros cenários e noutras circunstâncias.

O “Meu Caso” (diria José Régio) ou aquele que vou contar passou-se em 1977, num templo histórico e  espaçoso, repleto de adolescentes e adultos preparados para uma festa-espectáculo, denominado sacramento do crisma.

Entram em cena os quatro personagens supra-citados: um Bispo (a mitra), um Padre (a sotaina), um repórter foto-jornalista (a máquina fotográfica) e um Polícia (o “casse-tête”). A multidão (espectadores) inicialmente ficou no templo, mas depois também  envolveu-se  na trama. O epicentro da acção é a sacristia do referido templo. E foi assim:

O Padre, convidado para ser padrinho de um dos crismandos, foi impedido de assumir a função, apesar de estar munido do título comprovativo, passado pela entidade eclesiástica competente. Não te admito como padrinho. E não começo a cerimónia sem saíres da igreja, tens 5 minutos para abandonar a igreja – sentenciou o Bispo. E organizou, de imediato, um mini-tribunal popular, composto por dez homens que, para surpresa geral, não subscreveram a sentença. O Bispo, vencido, aproxima-se do Padre, aperta~lhe o pescoço com os dois punhos. Neste preciso momento entra o repórter fotográfico, em serviço de um jornal diário, e bate a chapa à agressão tentada. Acto contínuo, o Bispo ‘liberta’ o Padre e atira-se ao Foto-jornalista, puxa-lhe a máquina em repetidos soquetões e com tal violência, cujo resultado foi este: o Bispo fica com a máquina e o Fotógrafo com o estojo pendurado ao pescoço.

A cena continua. O Fotógrafo solta-se em altos brados: Quero a minha máquina, estou em serviço do diário, aqui está a minha credencial, quero a máquina, é o meu ganha-pão. Parte da população, impressionada, com o ruído dentro da sacristia, começa a invadir o recinto. Mas o Bispo, imperturbável, respondia pausadamente ao Fotógrafo: Não se preocupe, vou devolver-lhe a sua máquina, mas só depois de tirar o rolo. E se bem o disse, melhor o fez: extraiu o rolo. E aqui é que entra o Polícia, comandante do posto concelhio da PSP. Diz-lhe o Bispo: Senhor Sub-Chefe, pegue-me este rolo, fica à sua guarda.

O caso tem mais desenvolvimentos e contornos muito expressivos, até ao desfecho final, mas hoje ficamos assim. Vamos ao essencial, ou seja, o motivo desta crónica: dar razão aos comentários dos especialistas desportivos retro-mencionados quando referiram que não é só no calor do futebol que surgem idênticas reações comportamentais.

Analisemos sucintamente as semelhanças: um agressor, o Bispo (agredir não significa apenas e necessariamente esmurrar ou fazer sangrar); dois agredidos, o Padre e o operador de imagem, o Foto-jornalista; um instrumento de trabalho, a máquina fotográfica e (cereja em cima do bolo) um agente da ordem, o Polícia que, tal como o GNR, viu tudo e não interveio em nada.

Mas de onde teria surgido o Polícia?... Desde o princípio de tudo, lá estava ele, discreto, quase imperceptível, na periferia dos intervenientes. O público logo concluiu: Estava tudo combinado, ele estava ali ao serviço do Bispo. E tirou as mesmas ilações, há 44 anos, iguais ao jurista que ontem comentou na TV o incidente ‘moreirense’: A Justiça (neste caso, o agente da ordem pública) é forte com os fracos e fraca com os fortes.

Desconhecemos, por enquanto, o desenrolar dos eventuais processos criminais em curso. Quanto ao sucedido em 1977, sabe-se que o Foto-jornalista interpôs processo em tribunal. Entretanto o arguido Bispo morre, ficando extinta a causa. Esclarece-se, ainda, que os quatro intervenientes têm nome, sendo, porém, (e por assumido pudor) desnecessária a sua identificação, excepto a do cronista que, para memória presente e futura, é o mesmo que subscreve estas linhas.

 Finalmente, não pode passar desapercebida a diferença abissal em relação ao “lugar do crime”: de um lado, o profano recinto desportivo e, de outro, o sacro templo do crisma. Por onde se prova que, muito diferentes que nos queiramos parecer, somos todos iguais quando a hipnose do poder e a neurose da arrogância tomam conta do nosso Ser.

Quando mudaremos o Mundo?!

29.Abr.21

Martins Júnior

 

 

        

 

 

 

 

 

 

 

 

 

             

 

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