Não
será, por certo, este dia e nem será esta noite a pousada segura para
vislumbrar, sequer, a sucessão de factos (e interpolações de várias
tonalidades) que levaram ao desfecho do assassinato do Nazareno. Será talvez o
mega-processo mais longo de toda a história judiciária do mundo, empancado em milhões,
biliões, triliões de páginas escritas até hoje e às quais poder-se-ão apensar
outros tantos que virão a ser escritos no futuro. E todos marcados pela mesma
sina: nunca chegarão ao fim. Muito menos, consegui-lo-ei nestas escassas
linhas.
Daí,
um ponto de ordem na pesquisa científica sobre esta magna questão: não perder
tempo com os pormenores, com as minudências circunstanciais que nos foram
legadas pelos cronistas de antanho, os Quatro Evangelhos inclusive. Prova-o o
erudito teólogo Juan Arias: ”De alguns
episódios da paixão existem nos Evangelhos até sete versões diferentes”, porque
– esclarece o investigador Winter – “os
evangelistas escreveram as suas narrativas,
(quarente e alguns, mesmo, sessenta anos depois da morte de Cristo) com finalidade
religiosa e não histórica”. É aqui que se insere a afirmação já reproduzida em blog anterior: atribuir a crucificação de Jesus a
um puro acto de ‘entrega pelos nossos pecados’ não passa de um discurso redondo
destinado a branquear o crime. Razão pela qual o ilustre jurista Desembargador
Octávio Castelo Paulo conclui que, “a partir do relato da Ressurreição, o Jesus da história começou a confundir-se
com o Jesus da fé.
Nestes
termos, há que situar o acontecimento e identificar os autores materiais e
formais da condenação.
O
caso passou-se numa época marcada pelo mais poderoso regime colonialista, o
Império Romano, que dominava a Palestina e territórios afins. Onerava os judeus
com sucessivos impostos e vigiava-os com efectivos da polícia política, sempre
atenta aos movimentos, sobretudo vindos da faixa marítima da Galileia, Do outro
lado, sobrelevava-se o poder religioso, consignado aos Sumos Sacerdotes do
Templo, sentinelas do culto teocrático de Moisés, os quais dispunham de fundos
financeiros avultados, de tribunal próprio, O Sinédrio, ( a Inquisição Judaica,
diríamos hoje) e de uma polícia não menos vigilante que a guarda imperial. Um
requisito fundamental da organização político-religiosa consistia no privilégio
de que gozava o Representante do Império: o poder de homologar ou vetar o Sumo
Sacerdote proposto pelo Templo.
É
neste campo armadilhado e sofisticado que coube a Jesus viver uma vida de
trinta e três anos, ao que consta. Ele trazia um projecto novo, uma nova
Constituição para o mundo. Como tal, tinha de defrontar a ditadura religiosa de
um Deus irascível, despótico, e a ditadura imperialista que temia novas
revoluções, como num passado que lhes era recente, contra o intruso romano. É nesta
encruzilhada que convergem os dois poderes – Pilatos, o Político, e Caifás, o Sumo Sacerdote – que mutuamente se
sustentam.
Ora,
sabe-se algo do comportamento desse galileu, chamado Jesus. Sem pretender moer a paciência de quem me acompanha, vou
sintetizar com Jacques Paternot, no seu livro O Assassinato de Jesus:
É muito diferente o seu
estilo. A presença de Jesus e sua mãe é assinalada numas bodas em Caná. Bebeu
vinho e até o fabricou, do melhor, segundo contaram os convidados. Come pão e
peixe com os pescadores do lago de Genesaré, mas também lhe acontece jantar em
casa de simpatizantes, às vezes ricos e que não olham a despesas. Aceita que
uma mulher de moralidade duvidosa lhe perfume os pés. Alguns consideram-no um
fariseu, outros vêem nele um Zelota que teria a secreta ambição de libertar a
Palestina da alçada de Roma. Diversos relatórios mostram-no em discussões com
os fariseus e com os Sumos Sacerdotes aos quais chega a chocar quando jantou em
casa de Simão e a uma conhecida prostituta perdoa-lhe os pecados. Há
informadores que o apresentam como um revoltado contra o sistema económico e
social em geral. A noção que tem de um Deus Bom é absolutamente nova. Fala às mulheres
adúlteras, evita que sejam lapidadas e perdoa-lhes o pecado em troca de uma simples promessa, a de nunca mais voltar a
errar, conversa familiarmente com uma Samaritana cismática e faz-lhe uma
confidência: deixou de haver lugar sagrado, porque toda a terra é sagrada,
portanto, poder-se-á rezar em qualquer sítio, sem necessidade de ir ao Templo
de Jerusalém… E Caifás compreende imediatamente os estragos que esta visão causará
à doutrina oficial e a sedução que pode exercer no meio do povo.
A
citação foi longa, mas ainda assim, insuficiente. Deduz-se claramente o
percurso deste novo olhar, sobretudo acerca das estruturas religiosas que
traziam enjaulada a mentalidade do povo. O percurso e o seu desfecho, que se
resumem a dois passos: a ira doentia, incurável dos Sumos Sacerdotes e do seu
Tribunal, o Sinédrio. E, paralelamente, a vigilância de Pôncio Pilatos. O que
sucedeu, então? Os primeiros julgaram-no em processo sumaríssimo, à noite (contra o
Código Penal vigente, portanto ilegalmente), mas não possuindo jurisdição para
aplicar o jus capitis, a sentença de
morte, reservado ao Representante do Império, remeteram-no para Pilatos, sob a acusação
de pretenso Rei dos Judeus, portanto um crime político, severamente punido com
o patíbulo da cruz, instrumento de tortura unicamente aplicável aos criminosos
políticos.
Voltaram
a encontrar-se simultaneamente as duas potências dominadoras da Palestina, o
Sinédrio e o Pretório, o poder religioso e o poder político. De onde surge a
eterna questão: Quem matou Jesus, os Romanos ou os Judeus?...
Expurgando
todos os pormenores e minudências residuais com que a tradição foi revestindo a
tragédia de outrora e compaginando os lugares paralelos que chegaram até nós, o
veredicto final não deixa dúvidas: Foi o poder religioso o mais interessado e
empenhado em liquidar Jesus. E, tal como mais tarde fez a Inquisição Católica, entregou
ao poder político a execução dos figadais instintos dos Sumos Sacerdotes.
Assim,
com Jesus de Nazaré. Assim, em todos os tempos.
Seremos
também nós os agentes inconscientes, silenciosos, do assassinato das vítimas de agora ?!... Com
Blaise Pascal: Jesus estará em agonia até
ao fim do mundo!
01.Abr.21
Martins Júnior
Lindo texto, meu caro Padre Martins. Obrigado por partilhar, gratuitamente, a sua análise e conhecimento.
ResponderEliminarTal como outrora, hoje continuam a subsistir os mesmos "esquemas".
Grande abraço. Páscoa Feliz
É verdade que, ontem como hoje, continuam enraizados sobretudo nas sociedades ditas avançadas estes esquemas de poder, de controle absoluto. Mas, de acordo com o Jesus da História, Deus está longe desses planos e revela-se perante cada um nós sempre como um grão de trigo, que após lançado à terra multiplica-se de vida nova, de amor e de perdão. É por esta inesgotável seara de inteligência e de sabedoria, que passa a urdida análise fatual deste Mestre da palavra, um sério convite a estarmos cada vez mais atentos, aos esquemas do Poder dos nossos tempos.
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