O
vento ligeiro, quase atrevido, deste fim-de-semana baralhou serpentinas e
lantejoulas dos corsos carnavalescos, arrastou-as noite dentro e por aí andam
no torvelinho batuqueiro, sustentado pela simiesca pobreza de só imitar
os sambódromos cariocas. O costumeiro tapume de que “É carnaval, ninguém leva a
mal”, não chega para esconder a falta de imaginação criativa na concepção de
cenários e na execução de músicas originais e coreografias “marca
Madeira”, mais nossas que abrasileiradas.
Machico também viveu o “seu” carnaval.
Digo “seu”, porque a par das manifestações estrangeiradas, importadas da
capital madeirense, assistiu-se a um desfile diversificado, pitoresco, nalguns
casos com mensagens positivas, artisticamente pinceladas daquele “piripiri”
saudável, na linha do velho ditado Ridendo
castigo mores. Parabéns aos seus promotores e participantes.
Mas hoje, 23 de Fevereiro, a euforia
ensurdecedora do cortejo não conseguiu abafar uma voz e uma personalidade que
permanecem vivas, sobretudo nesta estância nascente da ilha. Refiro-me a José
Afonso que todos os anos é recordado em Machico. Neste ano, pela coincidência
de datas, a evocação de Zeca Afonso realizou-se em ambiente mais intimista,
fora do bulício carnavalesco. Por isso, aqui deixo assinalado o nosso
reconhecimento por aquele que, passados 33 anos sobre a sua morte, continua
presente nos nossos ideais e nos nossos feitos. Impossível findar este dia sem
lembrá-lo, “vê-lo”, ali no centro da nossa cidade, abraçado à estátua de
Tristão Vaz Teixeira e a cantar na sua voz inconfundível o pregão mensageiro da
libertação de Portugal: “Grândola, Vila Morena”. Foi aqui, em Machico, 1976!
Chegando a casa, puxei da estante um
dos volumes da obra de Zeca Afonso, li, reli e, de um salto, ocorreu-me esta
quase paradoxal conclusão: afinal, ninguém (ou muito poucos) como ele, seria
capaz de criar um extraordinário corso carnavalesco, em que entrariam todos os
tipos sociais, uma galeria completa dos,
vulgo dictu, crómos da nossa
praça, num contraste singular que teria
tanto de divertido como de cáustico e galvanizador. Convido a quem tiver
oportunidade percorra os títulos das
suas composições e há-de aí encontrar a confirmação deste meu palpite.
De entre todos, porém, escolheria o
persuasivo “librete” denominado Os
Vampiros. Oh grande Zeca! Estou a ver o solene cortejo desse “bando, com
pés de veludo, vestidos de mordomos (do
mais fino smoking),agachados, de
cócoras até, chupando o sangue fresco da manada”. Vê-los-íamos, os senhores “mandadores
sem lei, batendo as asas pela noite calada (como
fantasmas assaltantes) poisam nos prédio, poisam nas calçadas, enchem as
tulhas, bebem vinho novo, dançando a ronda no pinhal do rei”, no palácio de
governantes”. Soberbamente divertido, embora provocatório, seria vê-los entrar nas casas particulares e, sem
pedir licença, ouvir Zeca Afonso a denunciar: “Eles comem tudo, eles comem tudo
e não deixam nada”.
Desculpar-me-á o Grande Cantor da
Liberdade esta colagem cirúrgica à sua obra. Mas, tudo bem interpretado, o que
ele habilmente realizou foi interpretar
(e nalguns casos desmascarar) o carnaval da vida numa sociedade hipócrita,
falsa, demagógica – tão envernizada e fictícia como os três dias do carnaval de
rua.
Dentro ou fora de carnavais, Zeca
Afonso sempre connosco, cantando juntos o alvor de novos dias, porque nós todos
“Somos os Filhos da Madrugada!”.
23.Fev.20
Martins Júnior
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