As
ruas, como os homens, não se medem aos palmos. Nem pelo asfalto, nem pelas
faixas de rodagem, nem pelos palácios que as guardam. Medem-se pelo tamanho de
quem as habita. Porque as ruas têm alma – a alma das gentes. Soam-me ainda aos
ouvidos as toadas que, em saraus da remota juventude, fazíamos ecoar nas noites
estivais da nossa vila:
O nome da minha rua
Tem o tamanho da
gente
Corpo magro que recua
E alma que grita “P’rá frente”!
Percorro
as ruas de Washington pela vidraça do meu televisor. Nem vivalma! Dizem de fora
que são estepes frias onde se passeiam fantasmas subterrâneos, catacumbas de almas
sepultas nos mausoléus que as ladeiam.
Quase assim, também, o corpo das ruas
do meu burgo: assim desertas, retalhos que alguém deixou cair ao chão, falidos,
esquecidos. Mas não cheiram a fantasmas. Há cor nas portas e chama nas janelas.
Há gente dentro.
Nas
largas avenidas que levam ao Capitólio, o gelo queima sob os pés ausentes e varre
os corações que ousam lá chegar. Na minha rua, palpita-se o calor que sai pelas
frinchas dos umbrais, sente-se o cheiro da cozinha familiar e ouve-se o timbre
das vozes que lá moram, distintas na idade, mas uníssonas no mesmo coro
intergeracional.
Tão
iguais e tão diferentes as avenidas aristocráticas e as vielas do meu bairro!...
Porque o silêncio americano está todo ele blindado, armadilhado, gorilas
extra-terrestres, carregadores atestados de fogo, prontos a disparar. A solidão
da minha rua, porém, é um convite ao autodomínio, à autonomia do meu querer. Nos
sumptuosos logradouros federais, nem com um paiol de pólvora seria capaz de defender-me.
Mas no terreiro do meu casebre e da redondeza vicinal, não preciso de armas nem
couraças, porque sou eu o dominador assumido, bastando-me apenas o escudo
chamado “confinamento”. Na escadaria vermelha do Capitólio, matam-me. Ao contrário,
no chão plúmbeo da minha rua, só morro se eu quiser morrer.
Tudo
tão estranho e paradoxal! Porquê?... Pela diversa espécie do “bicho” que se nos
opõe.
No
reino das Américas, o “bicho” é um monstro tremendamente qualificado: o homem,
mais precisamente um homem. A fera – vencida – cega de ódio, investe, rasga,
esventra, até da bílis sair toda a boçalidade de que é capaz a desumanidade. Mas
o hipotético “bicho” covid, se passar na minha rua, não corre no
meu encalço, muito menos ousa entrar no meu quarto. Só entrará se eu for buscá-lo
lá fora, seja onde for esse ‘lá fora’: na multidão, na festa, no bar, enfim, no
fosso, por mais camuflado que este o seja.
Sem
metralhadoras e sem chaimites de guerra, estou mais seguro nas ruas do meu
bairro do que nas arregimentadas avenidas de Washington! Porque comigo moram
corpos e almas para quem a Vida é mais que o ouro, o poder, a opulência da
força. E ainda que o corpo fraqueje, a alma grita sempre: ”P’rá frente”!
Aqui
a Liberdade (com maiúscula!) é quem mais ordena.
E
o “Confinamento” assumido é o maior troféu da nossa Liberdade!
19.Jan.21
Martins
Júnior
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