Não obstante a euforia vã dessa noite
intermédia, este Janeiro nasceu velho. À velhice congénita juntou-se-lhe a
esclerose múltipla de fragilidades tantas que o primeiro dos doze foi ficando
moribundo nas ambulâncias, nos corredores dos hospitais, enfim, na sala de
espera dos crematórios. Aceitemos ou não, com o crepúsculo de Janeiro, ficámos
nós também prematuramente mais velhos, doentes, entediados, presos à cama ou às
paredes da casa que habitamos.
Sem pretender engrossar o espesso de
uma angústia que nos cobre, é caso para
rasgar a abóbada de todos os continentes com um gigantesco ponto de
interrogação: “Onde param os votos calorosos do Ano Novo? De que te serviram as
doze doces passas, os champanhes, as grinaldas de fogo solto dessa noite? Ou,
como diria Florbela Espanca:
………………Que fim deste
Às flores d’oiro que a sol bordaste,
Aos sonhos tresloucados que tiveste?...
Pelo mundo na vida, o que esperas,
Aonde estão os beijos que sonhaste,
Maria das Quimeras, sem quimeras?...
O certo é o que aí está, à vista
desarmada. Visões de ‘astronautas’ hospitalares, quase fantasmas polares,
carregando aos ombros e ao coração multidões de corpos cálidos, galerias
antigas arrumadas de cabeças febris repetindo ao mundo a clássica saudação Ave, Caesar, morituri te salutant (“Salvè,
Imperador, os que vão morrer estão a saudar-te”) gente exausta dando tudo e “mais
que permitia a força humana”. Pelo meio,
brigas político-farmacêuticas, político-financeiras gritando pelo antídoto
vacinal e, mesmo quando ele chega, mais brigas pelas precedências, enfim, casa
de horrores em toda a translação do quotidiano terrestre. Janeiro a envelhecer.
E nós, com ele.
Mas é preciso olhar mais acima e mais
além. Porque há mais vida além de Janeiro. Há mais Onze à nossa frente. Se é verdade
que, ao dizer adeus aos “morituri”, algo
de nós morre com eles, mais certo e seguro é possuirmos a alavanca invisível de
um animus
latente e poderoso que nos eleva e projecta muito para lá dos que sucumbem
à nossa beira. É de Lacordaire o axioma
comum à nossa condição humana: “As adversidades criam os grandes homens”. E já
que nos coube o duro inverno desta ‘travessia
no deserto’ da história, sejamos dignos da hora que passa. Ao sair deste
inverno há uma Primavera à nossa espera. E se Janeiro é velho, o Ano – este Ano
– ainda está Novo! O Ano é uma criança.
“Ficar em casa” – que não seja mais uma
ordem, mas um convite escrito como numa pauta musical no nosso coração. Um convite
cósmico. Na esteira de Xavier de Maistre, a Viagem à Volta do Meu Quarto é também uma viagem à volta do mundo. Fechado entre
quatro paredes, imagino-me num super-mega-apartamento circular do tamanho do
planeta, em que todos os quartos têm o alçado frontal feito de vidro
translúcido, tão límpido e transparente que nos deixa vermo-nos uns aos outros,
de longe como se estivéssemos tão perto. Do meu quarto vejo milhares, milhões,
biliões, irmanados comigo na mesma saga silenciosa de higienizar a nossa “Casa
Comum”, torná-la ecológica, habitável, respirável.
“Ficar em casa” – é também um convite à descoberta, uma radioscopia do
sortilégio escondido lá dentro. Limpar as nossas pupilas das escamas pesadas
que nos impõe a poluição urbo-humana da azáfama exterior, que nos comprime e
desumaniza. Deixar de ver a casa apenas como dormitório fugaz, impaciente, mas
como estufa selecta, solário de todo o
ano, a nossa praia privada, talvez o nosso mais íntimo santuário. Exagero
metafórico, excentricidade romântica?... De todo! Melhor redescobri-la - casa,
casebre ou palácio - nesta visão
pacífica, reconfortante, do que carregá-la nas grades da violência como prisão
de um castigo sem crime… Saber olharmo-nos, face a face, sentir a cor dos
olhos, na sala, na alcova, no chão, na terra. E aí achar a tal “Ilha do Outro
Mundo”, que toda a vida procuramos em demanda da Felicidade.
Vamos a isto. Porque se Janeiro é
velho, o Ano é sempre Novo!
29.Jan.21
Martins Júnior
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