segunda-feira, 1 de março de 2021

CANTO LIVRE EM TERRA ILHOA

                                                                          


Cantar na Madeira não é só ‘bailhinho’ – ou não deveria sê-lo. Orquestrar na Madeira não será monopólio do eruditismo da Clássica – ou não deverá sê-lo. Pintar, fotografar na ilha não poderá apenas encaixilhá-la no romantismo bucólico da paisagem. O mesmo dir-se-á da arte de Camões e Pessoa: não pode espasmar-se em esotéricos vagidos de amor ou pranto, encantamento ou narcísicos anseios. Há-de ser vida, acção, intervenção e, quando urgente, denúncia e protesto. É assim a literatura: espelho do quotidiano de um povo.

Na última semana de Fevereiro, evocámos o “Canto Livre” em Zeca Afonso e também neste rincão entre cidade e campo, a Ribeira Seca, a propósito do “27 de Fevereiro de 1985”. Paralelamente, fez-se alusão a uma certa esterilidade da literatura de Intervenção na Madeira. Nos poetas insulares, nados e criados nesta ilha, há um estranho antídoto (pejo ou medo) que percorre as veias da inspiração e, mais que o estro,  seca-lhes o ânimo e embota-lhes a sensibilidade para integrar na sua produção poética a alma de um povo atento, desperto, participativo, actuante e activo na construção da sua identidade cívico-social e cultural. Já apontei, no penúltimo blog alguns dos obstáculos a esta opacidade  quase genética que amarra a mão e a pena dos nossos vates.

Entretanto, tentei embrenhar-me, floresta adentro, pelo histórico poético madeirense e respiguei preciosos exemplares de olhar crítico sobre a Ilha. Além dos já anteriormente mencionados, cito agora Manuel Gomes Pais que, no “Album Literário” de 1885, censurava os ‘ingratos filhos’ da Ilha:

                   Tiveste outrora a glória que inebria

                   Eras poderosa e bela, eras contente,

                   Hoje, uns longes, uns vivos de alegria

                   Mostrando o teu sofrer intermitente

                  

Como todas as mães, uns filhos ingratos

                   Abriga teu seio de mimosa fada

                   Que sem pudor te olvidam, te dão tratos,

                   Como se foras mãe desnaturada

 

João França, jornalista, poeta, romancista e dramaturgo, em 1934 lançou este grito aos jovens seus conterrâneos:

                   É preciso libertar

                   A presente mocidade

                   E fazê-la desatar

                   Os laços da sociedade

                   Tão banais e tão mesquinhos

                   Como são os pergaminhos

                   As rodilhas da vaidade

 

                   Adequemo-nos à hora

                    Ao presente, ao Ideal

                   Da massa que luta e chora

                   Escrava do capital

 

João de Brito Câmara, ilustre advogado e poeta, publicou em Coimbra (1942) o seu segundo livro de poemas – “Relance” – onde, entre outros, põe a nu os problemas do regime da colonia e a escravatura a que eram sujeitos os camponeses caseiros. Recorto o final da “Hasta Pública”:

Tanto suor

Tanto sangue e tanta Dor,

A nossa herdade

- Nosso calvário

Nosso Amor –

Depois de andar no diário

Já era doutro senhor!

 

Gualdino Avelino Rodrigues, em “Quando Lançaram Meu Corpo ao Mar”, de 1983, retrata fragmentos da vida do pescador madeirense e da mulher bordadeira:

                   Meu pai desafiava o mar alto

                   O mar fundo onde mora o peixe-espada

                   Tão cego de andar tão longe de nós

                   A minha mãe desfiava lágrimas sobre o linho

                   Que outrora bordara com amor pela noite dentro

À luz dos candeeiros a petróleo

 

                   Moro em todas as vilas

                   Em todas as ilhas

                   Do arquipélago            

E quero pão

 

         José Agostinho Baptista, em 2008, dedica o “Filho Pródigo” à sua Ilha, como quem regressa de longe. E no poema ”Prece”, solta este pedido fremente:

Que ao meio-dia toquem os doze acordes do sol,

Nestes sinos.

Que se levante,

Que se levante a nossa vida sonâmbula,

Cambaleando entre abismos

 

         Demasiado breve - e demasiado longa para quem lê - esta incursão  no quase deserto da Canção de Intervenção madeirense pretende relevar o lado dinâmico e luminoso da poesia, bem como a missão da arte e dos artistas na sua osmose interpretativa da história e do lugar em que vivem, contrariamente a certas concepções elitistas, reservadas a seres nefelibatas, habitantes de um planeta imaginário de tertúlias e suspiros. Poesia é Vida!

         Ficará em suspenso, para maior aprofundamento, este desejo-convite de encontrar entre os nossos poetas e artistas os caudais de inspiração autóctones que, à semelhança das nascentes serranas,  percorram e fertilizem as gentes das Ilhas.  

        

01.Mar.21

         Martins Júnior

   

 

 

1 comentário:

  1. Que excelente trabalho académico "CANTO LIVRE EM TERRA ILHOA".
    Uma retrospetiva pelo percurso da inspiração poética de vários poetas madeirense, que fizeram da força da literatura o nosso Cante Insular, a luta contra a opacidade do nosso genético curvado espirito criativo. Este texto, como diz o seu autor, ficará suspenso como um convite à criatividade artística e literária e, que...//à semelhança das nascentes serranas, percorram e fertilizem as gentes das Ilhas//.

    ResponderEliminar