Cantar
na Madeira não é só ‘bailhinho’ – ou não deveria sê-lo. Orquestrar na Madeira
não será monopólio do eruditismo da Clássica – ou não deverá sê-lo. Pintar,
fotografar na ilha não poderá apenas encaixilhá-la no romantismo bucólico da
paisagem. O mesmo dir-se-á da arte de Camões e Pessoa: não pode espasmar-se em
esotéricos vagidos de amor ou pranto, encantamento ou narcísicos anseios. Há-de
ser vida, acção, intervenção e, quando urgente, denúncia e protesto. É assim a
literatura: espelho do quotidiano de um povo.
Na
última semana de Fevereiro, evocámos o “Canto Livre” em Zeca Afonso e também
neste rincão entre cidade e campo, a Ribeira Seca, a propósito do “27 de
Fevereiro de 1985”. Paralelamente, fez-se alusão a uma certa esterilidade da
literatura de Intervenção na Madeira. Nos poetas insulares, nados e criados nesta
ilha, há um estranho antídoto (pejo ou medo) que percorre as veias da inspiração
e, mais que o estro, seca-lhes o ânimo e
embota-lhes a sensibilidade para integrar na sua produção poética a alma de um
povo atento, desperto, participativo, actuante e activo na construção da sua
identidade cívico-social e cultural. Já apontei, no penúltimo blog alguns dos obstáculos a esta
opacidade quase genética que amarra a
mão e a pena dos nossos vates.
Entretanto,
tentei embrenhar-me, floresta adentro, pelo histórico poético madeirense e
respiguei preciosos exemplares de olhar crítico sobre a Ilha. Além dos já
anteriormente mencionados, cito agora Manuel Gomes Pais que, no “Album
Literário” de 1885, censurava os ‘ingratos filhos’ da Ilha:
Tiveste outrora a glória que inebria
Eras poderosa e bela, eras contente,
Hoje, uns longes, uns vivos de alegria
Mostrando o teu sofrer intermitente
Como
todas as mães, uns filhos ingratos
Abriga teu seio de mimosa fada
Que sem pudor te olvidam, te dão tratos,
Como se foras mãe desnaturada
João
França, jornalista, poeta, romancista e dramaturgo, em 1934 lançou este grito
aos jovens seus conterrâneos:
É preciso libertar
A presente mocidade
E fazê-la desatar
Os laços da sociedade
Tão banais e tão mesquinhos
Como são os pergaminhos
As rodilhas da vaidade
Adequemo-nos à hora
Ao
presente, ao Ideal
Da massa que luta e chora
Escrava do capital
João
de Brito Câmara, ilustre advogado e poeta, publicou em Coimbra (1942) o seu
segundo livro de poemas – “Relance” – onde, entre outros, põe a nu os problemas
do regime da colonia e a escravatura a que eram sujeitos os camponeses caseiros.
Recorto o final da “Hasta Pública”:
Tanto
suor
Tanto
sangue e tanta Dor,
A
nossa herdade
-
Nosso calvário
Nosso
Amor –
Depois
de andar no diário
Já
era doutro senhor!
Gualdino
Avelino Rodrigues, em “Quando Lançaram Meu Corpo ao Mar”, de 1983, retrata
fragmentos da vida do pescador madeirense e da mulher bordadeira:
Meu pai desafiava o mar alto
O mar fundo onde mora o peixe-espada
Tão cego de andar tão longe de nós
A minha mãe desfiava lágrimas sobre o linho
Que outrora bordara com amor pela noite dentro
À
luz dos candeeiros a petróleo
Moro em todas as vilas
Em todas as ilhas
Do arquipélago
E
quero pão
José
Agostinho Baptista, em 2008, dedica o “Filho Pródigo” à sua Ilha, como quem
regressa de longe. E no poema ”Prece”, solta este pedido fremente:
Que
ao meio-dia toquem os doze acordes do sol,
Nestes
sinos.
Que
se levante,
Que
se levante a nossa vida sonâmbula,
Cambaleando
entre abismos
Demasiado breve - e demasiado longa
para quem lê - esta incursão no quase deserto
da Canção de Intervenção madeirense pretende relevar o lado dinâmico e luminoso
da poesia, bem como a missão da arte e dos artistas na sua osmose
interpretativa da história e do lugar em que vivem, contrariamente a certas
concepções elitistas, reservadas a seres nefelibatas, habitantes de um planeta
imaginário de tertúlias e suspiros. Poesia é Vida!
Ficará em suspenso, para maior
aprofundamento, este desejo-convite de encontrar entre os nossos poetas e
artistas os caudais de inspiração autóctones que, à semelhança das nascentes
serranas, percorram e fertilizem as
gentes das Ilhas.
01.Mar.21
Martins
Júnior
Que excelente trabalho académico "CANTO LIVRE EM TERRA ILHOA".
ResponderEliminarUma retrospetiva pelo percurso da inspiração poética de vários poetas madeirense, que fizeram da força da literatura o nosso Cante Insular, a luta contra a opacidade do nosso genético curvado espirito criativo. Este texto, como diz o seu autor, ficará suspenso como um convite à criatividade artística e literária e, que...//à semelhança das nascentes serranas, percorram e fertilizem as gentes das Ilhas//.