segunda-feira, 17 de agosto de 2020

A PRECE-OFERTÓRIO DE UM BISPO!

                                                                           

Toda a semana vou ficar de pé, junto à campa rasa de Pedro Casaldáliga, o bispo dos índios escravos de Mato Grosso, no Brasil – “irmão de todos os nus”, diria Zeca Afonso – que fez do seu longo percurso existencial um cântico à Vida e uma luta pela Libertação do seu povo. Começo hoje por uma breve, mas vigorosa amostragem do seu estro poético ao serviço desse ideário emancipador. Pedro Casaldáliga escreveu assim o Ofertório da Eucaristia, que ele próprio intitulou “MISSA DOS QUILOMBOS”:  

 

“Na cuia das mãos

trazemos o vinho e o pão,

a luta e a fé dos irmãos,

que o Corpo e o Sangue do Cristo serão.

O ouro do Milho

e não o dos Templos,

o sangue da Cana

e não dos Engenhos,

o pranto do Vinho

no sangue dos Negros,

o Pão da Partilha

dos Pobres Libertos.

Trazemos no corpo

o mel do suor,

trazemos nos olhos

a dança da vida,

trazemos na luta,

a Morte vencida.

No peito marcado

trazemos o Amor.

Na Páscoa do Filho,

a Páscoa dos filhos

Recebe, Senhor.

 

 

–Na palma das mãos trazemos o milho,

a cana cortada, o branco algodão,

o fumo-resgate, a pinga-refúgio,

da carne da terra moldamos os potes

que guardam a água, a flor de alecrim,

no cheiro de incenso, erguemos o fruto

do nosso trabalho, Senhor!

 

O som do atabaque

marcando a cadência

dos negros batuques

nas noites imensas

da Africa negra,

da negra Bahia,

das Minas Gerais,

os surdos lamentos,

calados tormentos,

Acolhe Senhor!

 

—Com a força dos braços lavramos a terra

cortamos a cana, amarga doçura

na mesa dos brancos.

 

— Com a força dos braços cavamos a terra,

colhemos o ouro que hoje recobre

a igreja dos brancos.

 

—Com a força dos braços plantamos na terra,

o negro café, perene alimento

do lucro dos brancos.

 

—Com a força dos braços, o grito entre os dentes,

a alma em pedaços, erguemos impérios,

fizemos a América dos filhos dos brancos!

 

A brasa dos ferros lavrou-nos na pele,

lavrou-nos na alma, caminhos de cruz.

Recusa Senhor o grito, as correntes

e a voz do feitor, recebe o lamento,

Acolhe a revolta dos negros, Senhor!”

 

—Trazemos no peito

os santos rosários,

rosários de penas,

rosários de fé

na vida liberta,

na paz dos quilombos

de negros e brancos

vermelhos no sangue.

 

 

Recebe, Senhor

a cabeça cortada

do Negro Zumbi,

guerreiro do Povo,

irmão dos rebeldes

nascidos aqui,

do fundo das veias,

do fundo da raça,

o pranto dos negros,

Acolhe Senhor!

 

Os pés tolerados na roda de samba,

o corpo domado nos ternos do congo,

inventam na sombra a nova cadência,

rompendo cadeias, forçando caminhos,

ensaiam libertos a marcha do Povo,

A festa dos negros, acolhe Senhor!

 

A oração de um bispo-irmão dos oprimidos do sertão!

Não há paralelo possível com os discursos redondos, vazios, de mitrados e purpurados da Igreja Cristã e Ocidental…

De pé, em comunhão com Pedro Casaldáliga, sepulto aos 92 anos de idade!

 

17.Ago.20

Martins Júnior  

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