Toda a semana vou ficar
de pé, junto à campa rasa de Pedro Casaldáliga, o bispo dos índios escravos de
Mato Grosso, no Brasil – “irmão de todos os nus”, diria Zeca Afonso – que fez
do seu longo percurso existencial um cântico à Vida e uma luta pela Libertação
do seu povo. Começo hoje por uma breve, mas vigorosa amostragem do seu estro
poético ao serviço desse ideário emancipador. Pedro Casaldáliga escreveu assim
o Ofertório da Eucaristia, que ele próprio intitulou “MISSA DOS QUILOMBOS”:
“Na cuia das mãos
trazemos o vinho e o pão,
a luta e a fé dos irmãos,
que o Corpo e o Sangue do Cristo
serão.
O ouro do Milho
e não o dos Templos,
o sangue da Cana
e não dos Engenhos,
o pranto do Vinho
no sangue dos Negros,
o Pão da Partilha
dos Pobres Libertos.
Trazemos no corpo
o mel do suor,
trazemos nos olhos
a dança da vida,
trazemos na luta,
a Morte vencida.
No peito marcado
trazemos o Amor.
Na Páscoa do Filho,
a Páscoa dos filhos
Recebe, Senhor.
–Na palma das mãos trazemos o milho,
a cana cortada, o branco algodão,
o fumo-resgate, a pinga-refúgio,
da carne da terra moldamos os potes
que guardam a água, a flor de
alecrim,
no cheiro de incenso, erguemos o
fruto
do nosso trabalho, Senhor!
O som do atabaque
marcando a cadência
dos negros batuques
nas noites imensas
da Africa negra,
da negra Bahia,
das Minas Gerais,
os surdos lamentos,
calados tormentos,
Acolhe Senhor!
—Com a força dos braços lavramos a
terra
cortamos a cana, amarga doçura
na mesa dos brancos.
— Com a força dos braços cavamos a
terra,
colhemos o ouro que hoje recobre
a igreja dos brancos.
—Com a força dos braços plantamos na
terra,
o negro café, perene alimento
do lucro dos brancos.
—Com a força dos braços, o grito
entre os dentes,
a alma em pedaços, erguemos impérios,
fizemos a América dos filhos dos
brancos!
A brasa dos ferros lavrou-nos na
pele,
lavrou-nos na alma, caminhos de cruz.
Recusa Senhor o grito, as correntes
e a voz do feitor, recebe o lamento,
Acolhe a revolta dos negros, Senhor!”
—Trazemos no peito
os santos rosários,
rosários de penas,
rosários de fé
na vida liberta,
na paz dos quilombos
de negros e brancos
vermelhos no sangue.
Recebe, Senhor
a cabeça cortada
do Negro Zumbi,
guerreiro do Povo,
irmão dos rebeldes
nascidos aqui,
do fundo das veias,
do fundo da raça,
o pranto dos negros,
Acolhe Senhor!
Os pés tolerados na roda de samba,
o corpo domado nos ternos do congo,
inventam na sombra a nova cadência,
rompendo cadeias, forçando caminhos,
ensaiam libertos a marcha do Povo,
A festa dos negros, acolhe Senhor!
A oração de um bispo-irmão dos
oprimidos do sertão!
Não há paralelo possível com os
discursos redondos, vazios, de mitrados e purpurados da Igreja Cristã e
Ocidental…
De pé, em comunhão com Pedro
Casaldáliga, sepulto aos 92 anos de idade!
17.Ago.20
Martins Júnior
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