Todo
o dia dois batentes graves e fundos bateram à minha porta e perseguiram o
subterrâneo de mim mesmo:
“Quem és tu?” e “Quem sou Eu?”
O
primeiro veio da boca angustiada de Madalena ao Romeiro, na preciosa construção
dramatúrgica de Almeida Garrett, Frei
Luis de Sousa: “Quem és tu, Romeiro?”.
E ele logo respondeu: “Ninguém!”. O enigma da resposta era o
que mais atormentava o coração de Madalena e era a que ela menos esperava.
O
segundo surgiu, em discurso directo, da interpelação do Nazareno aos seus mais próximos
colaboradores: “E vós, quem dizeis que Eu
sou?”. Este é o batente que há mais de dois mil anos estala sobre o planeta
e ainda hoje foi lido em todos os templos do orbe terrestre. Sem, no entanto, conseguir-se
resposta adequada. O que, em síntese, equivale à resposta do Romeiro: “Ninguém!”.
E
tal como a definição do Romeiro envolvia o grande mistério de muitas vidas (do
cavaleiro D. João de Portugal, da sua mulher Dona Madalena de Vilhena, do putativo
marido Manuel Sousa Coutinho e sua filha Maria) assim também – mas numa escala
infinita - o designativo “Ninguém!” de Jesus de Nazaré esconde um mundo mais
vasto, a história da própria humanidade e a metamorfose da vida dos mortais.
Não se pode descrever o percurso humano e civilizacional sem que nos
confrontemos, conscientemente ou não, com esse herói, quase fantasma, omnipresente no princípio, no meio e no fim do
Homem sobre a terra.
Aqui
reside o drama e, para quem se interroga de verdade, aqui começa o tormento. “Quem
és Tu, Senhor?” – perguntava atónito Paulo de Tarso. E Ele devolve logo com
nova interpelação: “Quem pensas que Eu sou?”. Se observarmos, mesmo que a
olho-nu, a geovisão dos regimes, instituições e atitudes comportamentais das
diversas sociedades, verificamos que a personalidade de Jesus de Nazaré, tal
como o Amor e a Verdade, são os fonemas mais sublimes e, paradoxalmente, os mais
esfarrapados, mais distorcidos e vilipendiados no comum dos dias. Parafraseando
Pedro Casaldáliga que afirmava ser a democracia uma palavra actualmente
profanada, não estarei longe da verdade se disser que Jesus corre também o
risco (se é que já não o ultrapassou) de tornar-se um vocábulo desfasado do seu
étimo original, enfim, um nome profanado.
“E tu, quem dizes que Eu sou?”
Alexis
Carrel, já em 1903, ao livro com que acedeu
ao Prémio Nobel da Medicina, deu o título “L’Homme
cet Inconnu” – Esse desconhecido, o Homem. Mais tarde,em 2001, o teólogo
Juan Arías repetia o mesmo título ao seu “Jesus,
Esse Grande Desconhecido”.
É
o Grande Desconhecido, esse Jesus de Nazaré. Para não cair em certas aberrações
que por aí proliferam, limito-me apenas a confessar que quase me ataca uma vaga
de temor incontido quando me proponho falar, pronunciar sequer, o nome de Jesus,
tais os usos e abusos, aproveitamentos e apropriações, desvios e deturpações com
que levianamente (ou não!) embrulham o Seu nome. Supostas liturgias, devoções,
igrejas, religiões, assistências de corpo-presente, intervenções políticas,
grande parte de tudo isso não passa de lixo caricatural, farisaico, do rosto do
Nazareno…
“Ils ont changé ma chanson, ma” – soa-me
sempre ao ouvido a voz de Dalida, como se fosse a de Jesus de Nazaré a
queixar-se irremediavelmente: “Eles
cambiaram-me, trocaram-me por outro, por dinheiro, por vaidade, por poder e arrogância,
por nada e por ninguém!”.
“Quem és Tu, Senhor?” – sou
eu agora que pergunto e fico-me em escuta, enquanto, para conforto meu,
rememoro a confissão de Fiodor Dostoiewski:
“Para mim, Jesus é o que
há de mais belo, mais profundo, mais amável e adorável, mais perfeito. E se me
viessem dizer que a Verdade não estava com Jesus ou que Jesus não estava com a
Verdade, pois eu preferia ficar com Jesus do que ficar com essa Verdade”.
“Maranatah!”
23.Ago.20
Martins Júnior
Quem se sente tocado por estas interrogações de âmbito universal, permanece caminhado pelas sombras do silêncio...
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