quarta-feira, 19 de agosto de 2020

“DESCALÇO SOBRE A TERRA VERMELHA”

                                                                        

Maior prova de amar não há como dar a vida por quem se ama. E maior testemunho de servir não é possível como o da entrega de alguém à causa que abraçou.

         É hoje que, por feliz coincidência, trago a prova maior, abrindo o pano do grande teatro da história para apresentar :” DESCALÇO SOBRE A TERRA VERMELHA”.  E é o próprio protagonista que se apresenta:  Descalço, porque sem compromisso possessivo de qualquer interesse pessoal. Sobre a  Terra Vermelha, porque é de suor e de sangue a terra que piso”.

         PEDRO  CASALDÁLIGA!

É dele que vou continuar a falar. Sem parar. Até ao fim. Porque falar de Pedro Casaldáliga é como entrar no denso sertão do interminável Mato Grosso – a  Terra Vermelha, que lhe foi entregue como bispo – tal a vastidão do seu talento, da sua resistência, do seu estro poético, da eloquência inquebrável diante de tribunais, latifundiários, caciques e policiais em tempo da ditadura militar brasileira, entre 1968 e 1985. E até em confronto com o Vaticano, aliado do capitalismo de então. Ele mesmo o denuncia: “Capitalismo com rosto humano? É impossível!”. … Quanto mais com rosto cristão!...

O signo que mapeou todo o seu percurso entre os índios e explorados do Brasil nunca o perdeu de vista: Servir! Causou terramoto social a  primeira de ordem do seu programa pastoral: “Evangelizar sem Colonizar”. E sabia bem dO que falava. Ele catalão, de fibra e gema, enviado da cosmopolita Barcelona para “terra de ninguém”, onde o ancestral código colonialista, enraizado em toda a América Latina, impunha-se, como dogma e lei, a todas as formas de poder, quer económico, quer social e, sobretudo, religioso. Portugal, na vanguarda. Daí que “Evangelizar sem Colonizar” estalou no imenso território colonizado como uma irredutível declaração de guerra.

Foi o que inevitavelmente teve de acontecer. Ao serviço dos camponeses, cuja única fonte de subsistência era a terra que habitavam, eles, seus pais, avós, bisavós, os seus antepassados! Contra eles, indefesos, desarmados, arremessaram-se os latifundiários usurpadores, com o proteccionismo dos governantes, dos mercenários, dos militares. Quem os defendia, quem dava a cara pelos pobres ‘deserdados’ da terra? O bispo Pedro!

Por isso, teve de responder em cinco processos de expulsão do país. Várias vezes ameaçado de morte  pelos invasores e seus capangas, nunca fraquejou. Inclusive, manifestou-se publicamente pela revolta de Chiapas, no México. Um dos seus biógrafos razão tinha para afirmar: “Ele não é apenas um defensor da vida, mas a representação viva da resistência ao autoritarismo”.

Gente da fibra de Pedro Casaldáliga não suporta águas turvas, ambiguidades performativas, as religiosas sobretudo, simulacros de verniz em antros de podridão explosiva. E desassombradamente gritou ao mundo e à Igreja_ “Hoje, a democracia é uma palavra profanada”. Para ele, o caminho da autêntica realização humano-cristã estava na emancipação da Pessoa, detentora de direitos e deveres, e não em benesses de circunstância,  indignas e, por isso, falaciosas. Aculturou o povo. Como sintetiza a velha fórmula, em vez de dar o peixe, ensinou a pescar. A Lutar!

Daí que não escapou ao farisaico e puído baldão atirado pelos invasores, latifundiários sem escrúpulo: “comunista”. Não se intimidou. Seguiu em frente, desbravou a floresta, apoiado no famoso pregão do seu colega nordestino, Hélder da Câmara: “Quando alimentei os pobres chamaram-me santo sou um bom  - Mas quando perguntei por que há tanta gente pobre chamaram-me comunista”.

Nem depois de morto, deixaram Pedro Casaldáliga descansar o merecido sono de 92 anos de resistência…  Eis a prova: Um deputado federal disse a seguinte frase: “O bispo desencarnou no inferno há poucos dias. Ele desencarnou, o capeta que o tenha em um bom lugar, pois lugar de comunista para mim é no inferno”. Inacreditável!

Para alcançar, porém,  este patamar de consciencialização e assunção do seu lugar de “Evangelizador-não Colonizador”, teve de subir os socalcos de um outro calvário dentro da própria Igreja Oficial. É o que trarei no próximo encontro convosco.

Pedro Casaldáliga repousa, há oito dias, na campa rasa de Araguaia, Mato Grosso, na mesma tumba para onde eram jogados os índios e camponeses, Mártires da sua luta.  Os ossos, o crânio e o coração que tanta luz projectaram na densa floresta humana queremos nós que se transformem em força motriz de quem assume o seu decidido lugar, o nosso também,  na grande marcha da história!     

 

19.Ago.20

Martins Júnior

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